PUÑADO: Você poderia comentar um pouco sobre a escrita do difícil, do desagradável? Sentimos que, às vezes, ainda há muita confusão entre o moral e ético na vida e o moral e ético na literatura, nos personagens. Ainda se rechaça muito um narrador, ou personagem, imoral. Seu livro traz algumas situações bastante incômodas. Como você trabalha com isso? E sobre o capítulo que publicamos, em especial, você poderia comentar a escolha por escrever na segunda pessoa?
A minha escrita tende, de forma natural, ao imoral. De uma ou outra maneira, acabo no lugar dos tabus, do obscuro, do que causa pavor ou repugnância. Quem sabe seja porque eu acredito que é aí que a arte deve se debruçar: sobre o que está escondido no armário ou debaixo da cama. E não por mero espetáculo, mas porque o que nos perturba diz muito sobre nós como seres humanos – e o que é a arte senão o estudo do humano? Nesse sentido, minha ética de escrita é a de procurar a linguagem passando por cima dos limites do aceitável. É uma ética do indecoroso, do que aterroriza.
Acredito que a literatura tem que perturbar o leitor, incomodá-lo, estremecê-lo. E não me refiro apenas à sua mente, mas também ao seu corpo. Porque esse é o verdadeiro poder das palavras: abrir portas em nossas cabeças. Os que aceitam ler Nefando até o final estão aceitando que as palavras os atinjam por dentro. Houve quem me confessasse que não conseguiu terminar o livro, porque o conteúdo era muito forte. São leitores que têm medo das palavras. E tudo bem: eu também tenho medo delas.
A escolha da segunda pessoa para os capítulos de Ivan é proposital. Trata-se de um personagem que se encontra desconforme, ou em guerra, com seu corpo. Por um lado, o seu corpo deseja coisas, por outro, a sua mente não quer desejá-las. Por isso, ele sonha com Quetzalcóalt e Tezcatlipoca, que são opostos. O uso do “você” reflete esse desdobramento, mas também tem como consequência uma voz que fala diretamente ao leitor, para criar uma empatia forçada – já que todos, em diferentes níveis, estamos em conflito com os nossos corpos.
LIZANDRA: Diferentemente do português, o espanhol tem uma matriz mais estruturada, que orienta todos os países hispanófonos. Mas, como todas as línguas, é vivo e em cada país revela peculiaridades de cada cultura. Como é transitar pelo espanhol no Equador e na América Latina, na América Latina e na Espanha?
Explorar a fala dos diferentes países hispanoparlantes é muito prazeroso para mim. Gosto de fazer isso porque costumo adotar os modismos dos meus amigos mexicanos, espanhóis, bolivianos etc. Não o faço de maneira consciente e voluntária, acontece instintivamente. Presto atenção à maneira como as pessoas falam, porque admiro os usos que elas dão para o idioma.
LIZANDRA: O que você tem descoberto em sua pesquisa sobre literatura pornográfica latino-americana?
Muitas coisas. A primeira é que é um gênero onde mora tudo de obsceno e, por isso, se torna um espaço fértil para a exploração e desconstrução de tabus. Muitas autoras escreveram romances pornográficos na América Latina em contextos de repressão (em meio a ditaduras de direita, por exemplo, conservadoras no que diz respeito ao papel das mulheres na sociedade). Então é curioso como, nessa literatura, a palavra é levada aos limites do que se considera decoroso e aceitável. As escritoras de literatura pornográfica, na América Latina, escrevem na zona do proibido e com palavras que são vetadas a elas.
LIZANDRA MAGON é editora e sócia-diretora da Pólen Editorial, Colmeia Edições e da Pólen Livros. Também é tradutora do espanhol e do inglês. // As biografias de Mónica Ojeda e das demais autoras da Puñado podem ser lidas aqui. // Tradução da entrevista por Laura Del Rey. // Tradução do capítulo de Nefando por Raquel Dommarco Pedrão.