ANA: Em que medida você consegue sentir a presença de Honduras na sua escrita (Honduras no contexto da América Latina e em relação ao mundo atual)?
Para ser sincera, quando escrevo, não me proponho a sentir meu país. Embora haja um contexto social que, de alguma forma, deixa sua marca na literatura – e que é muito evidente na minha poesia –, quando escrevo narrativas, penso na história em si e nas personagens como seres humanos, com seu lado obscuro e suas contradições. Gosto de pensá-las como se estivesse erguendo uma construção, e durante o caminho decidir se será uma casa acolhedora ou um labirinto digno de pesadelos.
Sinto e penso mais sobre Honduras em situações que… não chamaria de alheias, mas distintas do ato de escrever. Porque é inevitável ter a consciência de que nascer e escrever em um país marginal dentro da própria marginalidade, como é o caso de Honduras, é muito diferente de escrever onde há bolsas de incentivo para escritores e uma ampla oferta editorial… ou de morar onde essas possibilidades existem. Diz-se, inclusive, que é como se o próprio nome do nosso país nos condenasse a seguir no fundo, de diversas formas – no aspecto econômico, político, social.
Pessoalmente, busco me lembrar de que a palavra “honduras” é bonita. Mas quantas possibilidades tem um escritor hondurenho, que dirá uma escritora, de publicar um livro em outro país, e transcender a um público mais amplo?
Claro, há exceções, algumas muito honrosas, de pessoas jovens que contaram com a sorte de ter talento, decidir que queriam se dedicar à escrita, e que vivem e estão se formando em Honduras. Mas avançar como escritora estando aqui, sendo uma mulher mais velha e sem ferramentas senão o instinto e algumas leituras, é muito mais difícil.
ANA: Você escreve contos e poesia, segundo as informações que chegam ao Brasil. Quais processos criativos e editoriais seus textos percorrem desde os pensamentos até os livros?
Tenho apenas dois livros publicados: um de poesia, feito antes de eu completar 30 anos, e outro de contos, lançado mais de uma década depois; e publiquei também alguns ensaios curtos. Ainda assim, dei a sorte de minha obra ter sido incluída em muitas antologias de literatura centro-americana.
Quando criança fui uma escritora precoce. Escrevi um poema aos seis anos, outro aos nove; e aos doze publiquei meus primeiros contos em revistas literárias hondurenhas. No entanto, a partir da década de 1980, em meio à convulsão social que vivíamos na América Central, a escrita passou a ser a última das minhas prioridades. Infelizmente, mesmo em períodos de maior estabilidade, continuei deixando-a em último lugar. Durante muito tempo fiquei sem escrever, e ainda careço da disciplina necessária para fazê-lo. Quem dera eu fosse uma dessas pessoas muito determinadas, que se levantam de madrugada para escrever, ou que têm trabalhos físicos muito demandantes e mal pagos, mas ainda assim continuam criando e conseguem publicar.
Muitos autores – especialmente homens, mas algumas mulheres também – não precisam se preocupar, por exemplo, em preparar comida ou limpar a casa, posto que outras pessoas de sua família se encarregam desses assuntos; ou podem pagar alguém para fazê-lo. Reconheço que é possível transpor esses obstáculos, mas seria maravilhoso não ter de lidar com eles. No meu caso, outra dificuldade para escrever e publicar é que sou perfeccionista. Resisto muito a publicar algo que não me convença como leitora. Desejo contar histórias que transcendam a anedota, com profundidade e matizes. Bom, dizer isso não significa que eu tenha alcançado esse ponto, mas minha ambição é essa.
No ano passado ocorreu um fato que, dentro desses parâmetros de marginalidade que eu mencionava antes, me fez pensar sobre meu potencial de escrever e transcender. A revista Cuadernos Hispanoamericanos, de Madri, me encomendou um texto inédito para um suplemento dedicado ao conto latino-americano. Custei muito a fazê-lo, devido ao contexto da pandemia e a circunstâncias pessoais, como a morte da minha mãe, mas assumi o compromisso. E me reencontrar com o processo criativo me fez retomar a fé em mim mesma como escritora. Confesso que caem lágrimas dos meus olhos quando releio esse texto, e algumas leitoras me disseram que também choraram ao lê-lo, porque sentiram, em alguns trechos, que eu estava narrando suas próprias histórias. Esse é, para mim, o tipo de conquista mais significativo.
A verdade é que, sendo pouco disciplinada, não tenho um procedimento determinado para escrever. Como dizia antes, acabo tomando as decisões pelo caminho. Geralmente, anoto minhas ideias, arquivo tudo, e apenas quando me sinto comprometida e sei que posso me sentar para escrever a sério, as revisito para ver se alguma funciona. Foi o que aconteceu com este conto que a Puñado me convidou para publicar
E por falar nisso, no que diz respeito a publicações, meu livro de poesia foi lançado por uma editora. Agradeço muito ao falecido poeta Rigoberto Paredes, pois ele leu alguns de meus poemas soltos, quando fui sua aluna na faculdade, e me disse que trabalhasse neles como um livro, porque estava disposto a publicá-lo na editora que, naquele momento, estava fundando. Foi assim que pedi férias do meu trabalho e terminei o livro.
Alguns dos meus contos foram publicados inicialmente em revistas e suplementos literários, e em 2000 eu os compilei em uma autoedição intitulada Una cierta nostalgia – um livro que acabou por abrir portas inimagináveis, como ter sido convidada a participar da Feira Internacional do Livro de Guadalajara. Posteriormente, fiz outras edições, sempre em tiragens pequenas; algumas autopublicadas, e as mais recentes pela Editorial Guaymuras.
ANA: Há frases em seu conto “Uma certa nostalgia” que me causam sensações fortes. Como mulher, como escritora, o que você poderia me dizer sobre isso: “Tudo está escuro. Tudo. Acho que até a escuridão que rodeia um cego é menor do que esta”. E: “Acho que o que me dá a segurança de não estar morto é o eco de uma esperança”. Estamos na escuridão total e sem esperanças?
É inevitável a sensação de que, como humanidade, damos voltas em círculos. A barbárie subsiste e, em muitos casos, recrudesce, contra as mulheres, as crianças, especialmente as meninas, contra a comunidade LGBTQIA+, contra os povos originários. Grande parte da população mundial vive em situação de exclusão e pobreza, agravada pelas guerras, declaradas ou encobertas, a pandemia de covid e os desastres naturais. Na América Central, oscilamos entre as ditaduras, os caudilhismos e os messianismos – talvez com exceção de Costa Rica, onde eles ao menos seguem tendo uma democracia formal.
Eu nasci e vivo em um país onde a incerteza e a desesperança nos golpeiam todos os dias, atualmente governado por uma narcoditadura, e onde a pandemia de coronavírus veio se somar a furacões, secas, incêndios e desastres de toda espécie. Diz-se que o momento mais escuro da noite é o que precede a luz do dia, mas as circunstâncias atuais, na minha opinião, não permitem assegurar essa manhã triunfal. Nessas condições, como ter esperança?
Uma amiga, uma escritora jovem, me lembrou recentemente que precisamos buscá-la nas lutas pela terra, pelos direitos das mulheres e de outras populações excluídas, mesmo quando esses processos também estão longe de ser perfeitos. Nessas circunstâncias, acho que a literatura e as artes são outro amparo para a esperança. Não se trata de fazer delas veículos de denúncia, porque a intenção didática e a literatura geralmente não são uma boa combinação, mas de nos fazer enxergar outros mundos, tanto exteriores como interiores. Não podemos deixar de reconhecer que, na era da internet, o enorme poder das redes sociais contribuiu para nos desumanizar, na medida em que o imediato predomina, o superficial igualmente, e glorificam o absurdo e o grotesco; mas também podemos utilizá-las como ferramentas para, de vez em quando, sair das nossas clausuras individuais e seguir acreditando na possibilidade de projetos coletivos para se construir.
ANA ELISA RIBEIRO é mineira de Belo Horizonte, escritora, editora e pesquisadora do campo da edição. Linguista pela UFMG, é também professora titular do CEFET-MG. Recentemente publicou Doida pra escrever (Editora Moinhos, 2021). // As biografias de María Eugenia Ramos e das demais autoras da Puñado podem ser lidas aqui. // Entrevista realizada em agosto de 2021 e traduzida do espanhol por Laura Del Rey.