[ Uma conversa entre a colaboradora convidada Amara Moira e a escritora, educadora e artista brasileira zênite astra. Esta entrevista foi realizada para a Puñado 7, em 2021 ].

AMARA: Quando penso na reivindicação de que obras de autoria trans sejam lidas, acredito que isso se justifique não por ser impossível que uma pessoa cis escreva uma narrativa sensível sobre pessoas trans, mas sim para que brechas se abram e a gente possa garantir melhores condições de existência para o nosso grupo, historicamente tão marginalizado. Você acredita que exista um “jeito trans” de escrever, ou que a autoria trans traga algo de único para as nossas produções?

concordo com você. não descarto que uma pessoa cisgênera consiga captar com sensibilidade uma experiência trans, mas certamente há mais brechas a serem escancaradas a partir da viabilidade e da visibilidade de produções feitas por pessoas trans. sabemos que historicamente são parcas as publicações (de toda forma: literárias, audiovisuais, musicais, teatrais…) feitas por e para pessoas trans que receberiam palco e público se não fossem mediadas por pessoas cis.

nos últimos anos estamos vendo um crescente barulho – que para ouvidos surdos pode soar como uma explosão – de pessoas trans encontrando caminho e voz para compartilhar suas próprias narrativas, reivindicações e experiências. o conto “dinah dinamite” se debruça um tanto sobre isso – sobre como pessoas trans tiveram pouquíssimo espaço para contar suas próprias histórias. sempre estivemos aqui, mas, frente à indiferença e à exclusão, nossas histórias circularam, forçosamente, dentro das comunidades, seja por redes de afeto, seja por aquelas poucas pessoas que adquiriram status de lenda.

nesse sentido, a resistência e viabilidade das narrativas trans é um tema importante de “dinah dinamite”, mas que eu exploro em outros contos de vila mathusa também. fundamentalmente, me pergunto: quem conta nossas histórias? e quem conta nossas histórias quando tantes de nós morremos e somos mortes?

AMARA: Um dos elementos que mais me chamaram a atenção no seu conto é o papel que você dá à transfobia. Ela perpassa a narrativa toda, mas ainda assim a impressão que fica é a de ser apenas uma coadjuvante, não o foco. Como você pensa a dosagem de transfobia numa obra? O que distingue uma obra transfóbica de outra em que a transfobia é só um elemento da trama?

enquanto eu escrevia os contos de vila mathusa, uma questão que me atravessava com frequência era justamente como pesar o espaço que a transfobia teria neles. com que cara ela se revelaria? porque certamente há um fetiche cisgênero que busca limitar nossas experiências como dolorosas. a norma informa: não vá por esse caminho, não desvie, não questione, senão a sociedade vai te punir. existe um conforto em demarcar nossas experiências como abjetas. não foge à minha atenção que isso se repita com pessoas que pertencem a outras comunidades minorizadas, sejam elas estigmatizadas por racismo, xenofobia e/ou capacitismo. a norma deforma: torce e demarca as narrativas possíveis entre o coitadismo ou a superação – estimulando narrativas em que, preferencialmente, as personagens sejam vítimas.

então, durante a escrita dos contos, tive a preocupação de que a transfobia não fosse protagonista de nenhuma das histórias. a rejeição de boa parte da sociedade à simples existência de pessoas trans é um patrimônio brasileiro que até hoje mostra os dentes, embora rotineiramente troque de roupa. como escrever sem reconhecer isso? o que busquei foi criar pequenos mundos nos quais as pessoas pudessem se enxergar. são histórias de encanto e de encontro, mas também de dor e de perda. e “dinah dinamite” reflete um capítulo bastante doloroso da história da nossa comunidade – que pavimentou o caminho até as nossas circunstâncias atuais e que, em alguma medida, ainda não se encerrou.

meu objetivo era construir uma narrativa que representasse a violência não como um fim em si mesma, mas como um componente formativo da nossa história. uma violência que antecede os anos 1990 e ainda perdura. não é aleatório que as palavras da personagem evoquem a indiferença e a conivência de parte da população, escancarada no documentário temporada de caça (1988), de rita moreira; tampouco que haja algum delírio esperançoso de continuidade “para além dos muros de um hospital”, como caio fernando abreu manifestou em suas cartas (1994). isso tudo coexiste. o passado é urgente – ele nos trouxe até aqui.

AMARA: Um último ponto que me agradaria discutir é a questão dos limites: faz sentido estipular coisas que não devem ser ditas ou feitas numa obra literária?

aceito a provocação na medida em que sei que é impossível encontrar uma resposta universal, ainda que seja um questionamento importante. reconheço que diferentes formas de expressão artística encontram distintas maneiras de se expressar, comunicar e representar vivências e temas diversos – e que por vezes isso significa incluir a violência (ou ainda, o obsceno ou o insólito) como repertório. e que, portanto, não faz sentido estipular o que deve ou não ser representado em uma obra.

contudo, eu tenho um pé atrás em relação à expectativa cisgênera de que as representações das experiências trans sejam marcadas pela confusão, pela exclusão, pelo desconforto… isso é, sim, um componente das nossas vidas – mas não pode ser tudo. porque há um traço marcante das experiências trans que é a necessidade inegociável de correr atrás de uma existência genuína. não queremos (somente) ouvir, assistir e ler histórias sobre como existe toda uma sociedade que despreza as nossas existências. queremos lembrar de tudo aquilo que vale a pena, do que nos faz pertencer. frente a um mundo hostil, nos fortalecemos em nossos afetos e em nossas comunidades.


AMARA MOIRA é travesti, feminista, doutora em Teoria e Crítica Literária pela Unicamp (com tese sobre as indeterminações de sentido em Ulysses, de James Joyce) e autora dos livros E se eu fosse puta (hoo editora, 2016) e Neca + 20 Poemetos Travessos (O Sexo da Palavra, 2021). // As biografias de zênite astra e das demais autoras da Puñado podem ser lidas aqui.


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