[ Uma conversa entre a colaboradora Fernanda Lobo e a escritora mexicana Margo Glantz. Esta entrevista é composta por trechos de um bate-papo mais longo, proposto e gravado pela Fernanda na Cidade do México. Os fragmentos abaixo foram publicados na Puñado 6B, em 2019 ].

FERNANDA: Em seu livro Historia de una mujer que caminó por la vida con zapatos de diseñador (Anagrama, 2005), uma das atividades fundamentais da protagonista, Nora García, é o caminhar e o deslocar-se. Michel de Certeau disse que “o simples fato de caminhar pela cidade modifica sua cartografia”. Como você vê o papel do espaço urbano na sua escrita? 

Eu não sou uma esportista, em absoluto. Não sei nadar, não sei andar de bicicleta, não sei patinar, não sei fazer nada, pular corda, nada! Mas eu caminho. Sei caminhar. Caminho. Eu sempre disse – e digo em Historia de una mujer… – que os pés são fundamentais, por isso dou tanta atenção aos pés. Eu caminho, caminho, caminho e compro sapatos, caminho, caminho e compro sapatos, caminho, caminho e vejo a cidade, vou a museus, adoro.

Acho que uma das figuras mais importantes das minhas leituras é o Georges Perec. Em muitos de seus livros, existe a ideia do caminhar pela cidade, do sentar-se em um lugar específico e observar o que acontece. Por exemplo, quando se está sentado em um café ou bistrô em frente à Igreja de Saint-Sulpice, vê-se passar os ônibus, vê-se o modo como as pessoas descem dos ônibus… e assim se torna possível começar a descobrir certa dinâmica daquela sociedade, da cidade e das próprias pessoas que por ali caminham. A coisa mais importante que alguém faz quando viaja é caminhar pela cidade.

FERNANDA: E o que fica da Cidade do México na sua escrita?

Ontem à noite um amigo querido me visitou e nos lembramos juntos que, quando éramos jovens, caminhávamos pela cidade. Coyoacán era uma cidade “caminhável” – e hoje é uma cidade “incaminhável”, né? Quer dizer, ainda é caminhável, mas os bairros em que eu caminhava quando era criança já não são caminháveis. Agora que eu já estou mais velha, caminho menos. A Cidade do México, desde que eu era jovenzinha até agora, mudou de tal maneira que caminhar se tornou uma espécie de subversão.

Há um texto muito interessante de literatura, do [Ray] Bradbury, que é estadunidense, uma espécie de distopia futurista. Trata de um personagem, nos Estados Unidos, que caminha. E, ao caminhar, parece suspeito para a polícia e é detido por isso. A imposição do automóvel foi uma das coisas mais terríveis que os Estados Unidos fizeram. Eu estava lendo que quando o George Bush, o pai, morreu, o velório foi realizado a uns vinte metros de onde o [Donald] Trump estava, e ele pegou um carro para ir até lá.Você não acha uma metáfora terrível da nossa época e dos Estados Unidos? Então, nesse caso, a minha escrita sempre vem, assim como o caminhar na Cidade do México, como um gesto transgressor.

FERNANDA: Você se autodenomina uma viajera e inclusive tem um livro de viagens, Coronada de moscas. As viagens aparecem também em Las genealogías e em muitos outros momentos. O que é tão importante para você, ou simplesmente prazeroso, nas viagens?

Viajar é outra forma de caminhar, fundamental. Uma forma de se “desatrofiar”, e isso é muito importante para mim, porque a rotina te atrofia. Claro, te ajuda também, porque eu não posso trabalhar ou escrever sem rotina, mas a rotina me atrofia e, ao quebrar a rotina e ver outras coisas, outras cidades, a pessoa também adquire um pouco da maneira de ver o mundo desse outro lugar, dessas outras pessoas. Mesmo que as cidades hoje em dia tenham ficado bem parecidas, por causa da globalização. Muitas vezes se vai de uma cidade a outra e todas são iguais, as mesmas ruas – como [o bairro de] Polanco, aqui na Cidade do México. Imagino que em São Paulo haja ruas semelhantes.

FERNANDA: Você já foi ao Brasil. Tem alguma história dessa viagem que poderia contar?

Uma vez, eu estive no Rio de Janeiro, em um congresso, e dividi o quarto com uma chinesa, que era do PEN Club chinês. Era uma época em que a China estava se abrindo ao capitalismo, mas ainda era comunista, nos anos 1990. Aí eu comprei uma blusa para a minha filha, e a chinesa, que era muito invasiva, me disse: “Me mostra a blusa que você comprou”. Aí ela viu a blusa e disse: “Isso aí até na China você consegue”. É emblemático como o capitalismo homogeneíza; como o terror à heterogeneidade se torna uma espécie de tabu: não se deve ser diferente, deve-se ser idêntico. Por isso a globalização é tão perversa.


FERNANDA LOBO é escritora, editora e pós-graduanda na área de literatura latinoamericana na USP. // As biografias de Margo Glantz e das demais autoras da Puñado podem ser lidas aqui. // Tradução do espanhol por Fernanda Lobo.


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