[ Uma conversa entre a colaboradora convidada Vana Medeiros e a escritora guatemalteca Denise Phé-Funchal. Esta entrevista foi realizada para a Puñado 7, em 2021 ].

VANA: Você conta que alguns leitores classificam “Diretamente nunca” como seu conto mais doce, mais terno – o que talvez seja uma declaração sobre ele, talvez sobre os outros. Você concorda com esse parecer? De onde surge e por onde caminha a ternura dele, para você?

Exatamente. Acredito que seja um de meus contos mais ternos porque fala da impossibilidade de se desprender do amor; da necessidade que temos de conservá-lo por todo o tempo possível; de não querer ou não poder renunciar a esse amor. A ternura é filha da inocência, é o que nos conecta com a crença de que as eternidades, os absolutos são possíveis.

Ao longo da vida, observei as demonstrações de amor mais comoventes nas despedidas provocadas pela morte – nesse brotar da doçura, da ternura e do amor por todos os poros quando a pessoa que amamos, que nos fez feliz, se transforma dia a dia em apenas uma lembrança.

A ternura anda, muitas vezes, de mãos dadas com a loucura, ambas sensações que nos permitimos sem comedimento na infância – ou seja, a ternura é a criança.

VANA: “Diretamente nunca” parece, para mim, dialogar bastante com uma tradição latino-americana de tratar temas violentos a partir da ótica do fantástico – mas um fantástico contemporâneo, imiscuído a um realismo cru que o conto propõe. Quais são os lugares do fantástico na sua obra? De que maneira essa linguagem dialoga com a violência que você propõe? gostaria de trazer à luz?

Como boa “filha” de [Miguel Ángel] Asturias e do realismo mágico latino-americano, o fantástico transpira na minha obra porque está na realidade que me rodeia. Talvez seja uma forma de defesa da minha sensatez frente aos horrores do dia a dia, frente à violência que se sente e se respira nas ruas da cidade onde moro. A linguagem me permite envolver o áspero com suavidade, torná-lo mais… apresentável, por assim dizer. Cobri-lo, mas sem disfarçar; aproximá-lo do leitor com os sentimentos que evoca, mas sem cair em sensacionalismo ou no “gore”, que, por si só, já se vê no cotidiano dos mortos pela violência, dos corpos esquartejados encontrados na rua, das agressões sem denúncia.

VANA: Você fala sobre a importância de, em um movimento parecido com o de se ter “um quarto todo seu”, conforme propõe Virginia Woolf, lutarmos, na contemporaneidade, pela descoberta de uma voz própria; o que pode ser um processo mais desafiador para escritoras – e demais corpos dissidentes, considerados abjetos – do que para escritores. O que poucas vezes nos dizem é: uma vez que tenhamos nos aproximado da descoberta dessa voz, não é fácil defendê-la, conservar o direito a ela, deixar de uma vez por todas de submeter-se. Como esse processo tem se desenvolvido no seu caso? E como nos proteger das armadilhas que nossas vozes internas armam para nós, escritoras latino-americanas?

A consciência de que a experiência da vida é finita, de que a morte está nos acompanhado segundo a segundo… a ideia de que o tempo neste mundo é tão frágil, tão curto… são provavelmente os motores e a defesa da minha própria voz.

Isso é o que me encoraja: pensar, a cada vez que alguém me vê como estranha, esquisita, excêntrica ou louca, que eu tenho um tempo curto neste planeta, neste corpo e com esta consciência – e que, portanto, a opinião dos outros e suas expectativas sobre quem devo ser ou como devo me portar são coisas que não têm grande importância. O importante é minha lealdade comigo mesma, com o que amo e com o que acredito.

Em relação às escritoras e aos corpos dissidentes, acho que essa audácia, essa defesa de si mesma, é essencial para encontrar a própria voz, desenvolvê-la e conservá-la.

A clareza de que escrever responde essencialmente à nossa necessidade de contar a nós mesmas a realidade, de explicar a nós mesmas o mundo, é essencial para não vendermos essa voz, para não sacrificá-la por modismos, temas, política ou dinheiro. Trata-se, no fim das contas, de uma luta que nasce da consciência de que a vida é curta e de que esta voz, esta perspectiva que tenho do mundo é única e, sem dúvida, irrepetível.

VANA: “Diretamente nunca” é, apesar de ter sido publicado há uma década, um conto sobre isolamento. Esse tema, que aparece há tempos nas obras de diversos escritores e escritoras latino-americanos, agora é ressignificado, e me faz pensar que o conto talvez possa ser lido à luz das relações que estão se estabelecendo no mundo pós-pandemia, especialmente a partir de uma voz do sul global, observando novas configurações neuróticas de fronteira e migração que começam a se desenhar entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, na corrida por uma fuga desse pesadelo. Como é reencontrar esse texto hoje?

A pandemia tem sido uma experiência quase de ficção científica. Muitos dos mundos imaginados e criados ao longo da minha literatura se tornaram, num piscar de olhos, reais, ou quase. “Diretamente nunca” fala de uma experiência de isolamento voluntário frente à morte de um ser amado – situação que, de imediato, remete à realidade que tivemos de viver no último ano e meio, onde muitos não puderam se despedir de seus entes amados, levados diretamente à cremação ou à vala comum, sem a possibilidade de um último afago, de um beijo na testa.

Por outro lado, com relação às fronteiras neuróticas, as ações das baratas que se esgueiram até os apartamentos vizinhos para viver longe da morte, para ir a Paris, são justamente um reflexo dessa necessidade que nós – seres vistos como desprezíveis para muitos habitantes de países desenvolvidos – temos de nos afastar da morte, da fome imposta pelo capricho de um amante da morte (no caso do conto) ou de governantes necrófilos que controlam nossa fome e essas meias-vidas que levamos nos países em desenvolvimento.

VANA: A literatura e o audiovisual são duas linguagens diferentes, que podem se complementar, mas muitas vezes exigem demandas bastante diversas da autora. De que maneira sua experiência como escritora e como roteirista se interseccionam? Como foi sua trajetória caminhando por essas linguagens? De que forma a escritora influencia a roteirista e vice-versa?

Minha literatura é totalmente visual, ou pelo menos é a percepção que as outras pessoas têm do que eu escrevo.

“Posso ver cena a cena”, “consigo enxergar os espaços e os personagens” são comentários que escuto com frequência e que, de fato, refletem o modo como crio e limpo meus textos. Se, ao ler, consigo enxergar o texto, formar uma sequência clara na minha cabeça, se sinto que a escrita não tem “ruídos”, então sei que ele está pronto para ir para o mundo e ser ele mesmo.

Nesse sentido, a adaptação para o audiovisual não é tão complicada, porque é quase uma transposição do meu modo de ver o mundo na literatura – embora um dos meus melhores amigos, o diretor Juan Manuel Méndez (com quem já colaborei em diferentes projetos), às vezes me diga que ainda me falta entender que existem coisas possíveis na literatura, mas não no cinema. “É uma questão orçamentária”, respondo, e damos risada.

VANA: Chamou minha atenção que, como socióloga, você tenha uma ampla experiência de trabalho com mulheres vítimas de violência sexual. A obra de uma escritora dificilmente passa impune por esse tipo de experiência. De que maneiras esse olhar sociológico para o tema aparece na sua obra como um todo?

Uffffff… Desde que era estudante de Sociologia estive em contato com a violência contra as mulheres. Trabalhei, no meu primeiro trabalho como socióloga, acompanhando processos de exumação em comunidades indígenas que foram vítimas de massacres durante a guerra (1960-1996) – uma guerra que agrediu de forma violenta a população mais desassistida. Nesse trabalho, coletei depoimentos de mulheres que foram violentadas, queimadas, torturadas e que perderam pais, mães, filhos, maridos… pelas mãos do Exército. Após ouvi-las, eu voltava ao meu hotel de socióloga urbana e chorava até adormecer. Suas palavras, mesmo traduzidas, me feriam. Também pude ver os corpos das pessoas torturadas e enterradas em valas comuns, pude ver suas mãos amarradas com arame farpado, os golpes fatais em seus crânios. Acho que esse é um tema inescapável para a minha profissão como socióloga, para a minha vida e para a minha literatura.

Logo depois, trabalhei dirigindo uma clínica que atendia meninas, jovens e mulheres vítimas de violência. Éramos uma equipe pequena de quatro pessoas, que se desdobrava para atender diariamente entre 10 e 15 mulheres violentadas. Chegando em casa – minha casa suave, protegida e protetora – eu também desatava a chorar. Foi dessa experiência que nasceu o livro Buenas costumbres, do qual faz parte “Diretamente nunca”.

Sobre a outra experiência, a das mulheres e das valas comuns, somente agora, 20 anos depois, é que estou conseguindo começar a escrever.

No entanto, esse tema da violência – ou melhor, das violências – contra as mulheres, me acompanhou durante todos esses anos; é, de alguma forma, o meu tema mais recorrente, aquele que pede que eu me aproxime para deixar plasmada tal realidade. É uma força que me guia, o meu modo de dizer: isso acontece todos os dias, a toda hora.


VANA MEDEIROS é dramaturga, diretora e roteirista. Escreveu, com Djin Sganzerla, o longa Mulher Oceano (2020), filmado entre o Rio de Janeiro e Tóquio, com estreia na 44ª Mostra Internacional de Cinema de SP e vencedor do prêmio de Melhor Filme no Cine-PE 2020 [disponível na Amazon Prime]. Assina ainda o curta Polaris (2019), filmado entre o Brasil e a Suécia, é autora de diversas peças de teatro e representou a produção nacional na conferência Women Playwrights International (Chile, 2018) e no Corredor Latino-Americano de Teatro (México, 2017). // As biografias de Denise Phé-Funchal e das demais autoras da Puñado podem ser lidas aqui. // Entrevista traduzida do espanhol por Marcela Katzin.


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