LUCIARA: Você poderia comentar como se iniciou sua relação com a escrita e por que a poesia se tornou um gênero literário significativo nesse processo?
Eu sempre escrevi com a intenção de falar sobre a vida das mulheres. Escrevo muito sobre a luta das mulheres e todo o seu esforço; as líderes, as profissionais da educação, da saúde, artesãs, parteiras, avós, crianças, todas.
E escrever, para mim, também foi uma forma de luta, por assim dizer. Porque eu perdi uma filha de 20 anos, e escrevi muito para ela depois que ela partiu. Mas demorou muito tempo, não foi logo que ela partiu. Faz 21 anos que isso aconteceu. E eu passei a reunir, organizar meus escritos.
Mas sobre as mulheres, eu sempre escrevi – textos que lia em eventos, em congressos. Minha escrita e minha poesia se dedicam principalmente às mulheres, porque sei que a situação delas é muito dura em nosso país – e sei que no mundo todo também. É muito sacrificante ter os direitos pisoteados. As mulheres não são escutadas, suas vozes não são ouvidas. Bom, antes nem havia a possibilidade de estudar ou tomar suas próprias decisões – e eu, vendo essa situação, trabalhava muito com as mães, as avós… aspectos de sua cultura e espiritualidade.
É isso o que me dá forças para seguir adiante, a essa altura da vida, porque já sofri demais, já passei por muitas coisas – boas, más, tristes –, mas sigo de pé. Assim somos as mulheres, invencíveis.
Como dizia a minha bisavó, ainda que estejamos velhas, a nossa voz é nova; é como se tivéssemos acabado de nascer, como uma florzinha. Quando partimos, partimos outra vez com essa voz: suave, boa, jovem como uma flor. Ela dizia isso, e eu mantenho essa postura.
Não me nego a trabalhar com os homens também, porque na luta dos povos indígenas, lutamos mulheres e homens.
À minha filha eu escrevi muito. Escrevi sobre o que acontecia com ela, sobre o que acontecia com a gente quando ela era viva e também depois que ela partiu. Escrevi sobre a minha luta, meu sofrimento, o que passei, a sensação de ausência. Cheguei até a depressão. Porque eu não encontrava soluções para o caso da minha filha, que morreu por negligência médica [Dora deu entrada em um posto de saúde com um corte simples, e acabou falecendo]. Eu ia de uma cidade à outra, pelas ruas, para pedir justiça. Mas não consegui nada, porque não tenho dinheiro. E a justiça aqui no Paraguai, e sei que no mundo todo, é o dinheiro.
Mas segui adiante com a minha família. Até porque, acabou ficando junto a mim uma neta, órfã da mãe. Sei que há milhares como eu e como todas. Eu amamentei essa neta – que tinha dois anos quando minha filha morreu… Ainda mamava. Minha filha mais nova, a última, tinha 10 anos na época.
Numa noite de angústia e desespero, minha neta chorando sem parar, eu dei meu peito para ela. E ela aceitou. No dia seguinte, eu já tinha produzido leite de novo. Muito leite. Amamentei essa neta por mais dois anos.
Nós mulheres temos um corpo e uma alma cheios de pureza, cheios de uma espécie de natureza vivente que caminha, que sente… pois ama, adora a vida. Eu entendo muito sobre luta, alegria e tristeza. Já vivi de tudo. E o que eu mais valorizo são as mulheres, por isso foco nelas minha escrita e minha poesia.
LUCIARA: Ñe’ê yvoty. Ñe’ê poty, seu primeiro livro, foi um sucesso de vendas e um marco para a sociedade paraguaia. O que você considera que há de especial no livro, o que o difere?
Meus poemas, minha poesia, minhas histórias sagradas venderam bem. É verdade. Não me queixo. Consegui fazer lançamentos oficiais, apresentações em lugares diferentes aqui no Paraguai, com bastante gente. Muitos preferiram comprar o livro e levar para ler [a apenas ouvi-la recitar nos eventos]. Eu recebi muitos elogios, incentivo… Isso tudo me alegrou muito. Me sinto contente, honrada, porque quero que reconheçam minha luta, meu valor e o meu trabalho.
Espero que cada vez mais pessoas possam conhecer as escritas, a poesia e as histórias sagradas dos povos indígenas do mundo.
LUCIARA: Você é a primeira escritora indígena aceita na Sociedad de Escritores del Paraguay [2017]. No Brasil, temos pela primeira vez a candidatura de um escritor indígena para a Academia de Letras nacional, o autor Daniel Munduruku. Em 2018, Conceição Evaristo, escritora negra, candidatou-se para ser a primeira mulher negra presente na instituição, mas perdeu a eleição. Como lidar com essa persistência das instituições de âmbito nacional como pouco representativas das populações e saberes de seus países? Seguindo no mesmo tema, outro ponto que me chama a atenção são os lugares ocupados pelos “primeiros”. Ser a primeira em algo pode tanto demonstrar ausências quanto presenças, tanto ampliar quanto centralizar a pauta em uma única figura. É uma posição atravessada por muitas nuances, que tem sua importância ao quebrar uma estrutura de exclusão, mas que não pode encerrar-se em si. Como você enxerga esse debate?
Tudo o que você citou, e ter me tornado sócia da Sociedad de Escritores del Paraguay, são coisas que vejo como êxitos enormes. Não é que eu não esperasse, porque trabalhei muito para alcançar isso. E as pessoas viam que eu trabalhava com justiça, me colocava com justiça. Então acreditei. Acreditei muito que seria uma oportunidade enorme para todas, e para os homens também, porque todos somos poetas e escritores.
Todos temos em nossa mente, em nosso coração, o que pensamos, o que sentimos, as coisas boas e as más. Disso, falta só um pouquinho para alguém escrever num caderno: é pegar um lápis, uma caneta, e escrever. Todos nós temos essa capacidade, esse afã de escrever o que sentimos, o que nos acontece. Somos assim. E isso é ser poeta, escritor ou escritora.
Me sinto agradecida a mim mesma pelo valor que tenho e por ter enfrentado tantas coisas e seguido adiante. Eu adoro o desafio, e desafio outra vez o desafio, porque gosto. Quero conhecer mais coisas, quero coisas novas, conquistar coisas novas para mim e para o meu povo. Esses reconhecimentos abriram portas para todos nós: todos com interesse, talento e capacidade para levar adiante essa vontade de escrever, de exprimir nossos pensamentos e nossos ideais em cadernos, que depois se tornarão livros. Me sinto muito agradecida com a Academia e muito fortalecida no Paraguai por essas conquistas.
LUCIARA: Você se apresenta como uma escritora poeta que escreve em guarani. A poesia enquanto gênero literário é flexível e se altera de acordo com o idioma em que se desenvolve. No seu processo, quais especificidades você apontaria sobre a escrita da poesia em guarani? E sobre o campo editorial, como você enxerga o tratamento dado aos escritores indígenas, em especial aos guaranis, no Paraguai?
Adoro a minha língua guarani, que é o guarani paraguaio. E tenho também minha língua própria de Aché, que é a minha vida, o meu mundo. Escrevo e leio nelas com muita honra. Converso com as pessoas, conto coisas em escolas, colégios… para gente daqui e gente de fora. Compartilho. Não existe nada mais lindo do que a língua que uma pessoa fala.
No Paraguai nós temos o guarani paraguaio, que é a língua falada em todo o país, e, além dela, cada um dos 20 povos indígenas tem sua própria língua, sua cultura diferente. E temos também o castelhano, que é a outra língua oficial do meu país. Estamos lutando para que algum dia nossas línguas também possam ser oficiais.
Eu escrevo com muito respeito pelo meu povo; com honra de deixar o guarani paraguaio e o Aché escritos em livros, materiais escolares, livros de história e de poesia.
Aqui no Paraguai consideramos que temos uma educação indígena bastante avançada. Porque conquistamos, com muito esforço e muita luta, uma lei [dentro do Ministério de Educação e Ciências] para os povos indígenas. Então temos uma educação própria – que são nossa língua, nosso canto, nossa dança, nosso sistema de viver dentro e fora da comunidade; e cada um tem sua educação comunitária, sua espiritualidade. Além disso, temos também a educação escolar, que é a “dos brancos”, “dos ocidentais”. Chamamos assim porque não é dos povos originários, é dos brancos. Mas então é isso: temos dois caminhos grandes dentro da educação indígena no Paraguai. A educação própria dos povos e a da escola, dos colégios, das universidades. Trabalhamos e apoiamos essas duas educações.
Dentro das escolas, temos muitos docentes indígenas profissionais, muitos materiais ensinados em línguas próprias, desde a educação mais inicial. E seguimos; produzindo materiais para as universidades, institutos de formação docente… porque temos muitos docentes indígenas fora do país também, estudando, e que podem ensinar nessas línguas, levar adiante. Nós honramos muito a nossa língua e todas as línguas indígenas do mundo, pois elas são parte da nossa vida, da nossa energia.
Quando um indígena não sabe falar em sua língua, é um indígena vazio; um indígena que pode tropeçar a qualquer momento, porque não fala e não entende sua própria língua. Isso não pode acontecer. Somos povos, temos que ter presentes nossa língua, nossa cultura, nossa espiritualidade indígena. Tudo isso é educação.
A educação não é só a escola. A educação começa na casa cerimonial, com os avôs e as avós; em casa, com a mãe e com o pai; dentro da comunidade – quando se vai pescar, caçar, buscar frutas e remédios, quando se faz chicha, bebidas tradicionais, comidas tradicionais.
Essas são educações indígenas, que um branco não pode fazer como fazemos, e que não entende bem, porque são educações próprias nossas. Mas temos muita vontade de ensinar e de falar sobre elas.
LUCIARA: Por fim, gostaria de lhe pedir para comentar seus próximos escritos. O que você tem preparado?
Neste exato instante estou escrevendo muito, mas não sei quando vou acabar. Porque… é assim [risos]. Não tem hora, não tem dia, não tem ano, a sua escrita. Você escreve, escreve, pensa, escreve… e, de repente, sai. É assim [risos].
LUCIARA RIBEIRO é educadora, pesquisadora e curadora. Interessa-se por questões relacionadas à descolonização da educação e das artes e pelo estudo das artes não ocidentais, em especial as africanas, afrobrasileiras e ameríndias. É mestra em História da Arte pela Universidade de Salamanca (USAL, Espanha), onde foi bolsista da Fundación Carolina, e pelo Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), onde foi bolsista da CAPES. É graduada em História da Arte pela UNIFESP, com intercâmbio na USAL, e técnica em Museologia pela ETEC. Atualmente é docente no Departamento de Artes da Faculdade Santa Marcelina.// As biografias de Alba Eiragi Duarte Portillo e das demais autoras da Puñado podem ser lidas aqui. // Entrevista realizada em outubro de 2021. Diferentemente das demais entrevistas desta edição, realizadas por e-mail, esta teve a particularidade e o sabor de ser respondida via áudios de Whatsapp por Doña Alba. Transcrição e tradução do espanhol por Laura Del Rey.