[ Uma conversa entre a colaboradora convidada Fernanda Rodrigues e a escritora granadina Merle Collins. Esta entrevista foi realizada para a Puñado 6B, em 2019 ].

FERNANDA: Você já escreveu romances, contos e poemas. Como enxerga o seu processo de escrita nos diferentes gêneros literários?

Depende da ideia e também de se/como os personagens se apresentam para mim. No caso de alguns dos poemas narrativos longos que se apresentaram para mim em Londres, acontecia assim: eu via pessoas em diferentes situações e fazia jornadas mentais com elas pela situação – por exemplo, uma mulher imigrante em um trem, pensando na sua casa; um homem entrando no vagão e pensando em como os olhos dos outros denunciavam a forma como o enxergam por conta de sua raça. Também há casos de poemas curtos que exploram um sentimento – às vezes efêmero, às vezes nem tanto.

Os romances tendem a ser uma investigação dos personagens, então eles seguem comigo por anos. Recentemente, escrevi uma biografia; isso aconteceu porque me pediram e eu tinha interesse em explorar a história do indivíduo, um governador de Granada.

Tenho escrito muitos ensaios sobre Granada recentemente, por causa dos efeitos das sucessivas tentativas de revolução, do colapso desse processo, da invasão e do mal-estar sócio-político. Tenho interesse por todas as formas de escrita.

FERNANDA: Como os diversos trabalhos que você teve ao longo da vida (seja lutando na revolução como coordenadora de pesquisas latino-americanas e caribenhas, seja como professora, seja como acadêmica) influenciam seus textos?

Todos esses papéis fazem parte da minha vida, dos meus interesses, por isso todos se refletem na minha escrita. Eles foram bem diferentes uns dos outros, então talvez o meu interesse por variadas formas [de escrita] não seja uma surpresa.

FERNANDA: No seu texto “Pedrona”, há algumas angústias ligadas a ser mulher. Logo na abertura, vemos a inquietude de ser mãe depois dos 40 anos e o medo de andar em certos lugares mais desertos à noite. Qual a importância desse tipo de relato para a sua literatura? 

É importante porque fala sobre algumas das experiências passadas por pessoas do campo – que têm poucos recursos e que vivem em países com poucos recursos. A história se passa em Granada. Estão nela, também, referências simbólicas a legados colonialistas e à vida na fazenda. Tenho interesse por explorar tanto a história de uma mulher como Doux Johnson, batalhando por algum tipo de felicidade, como a história da enfermeira – não muito melhor, financeiramente; e também simbolicamente assombrada por histórias passadas.

FERNANDA: Ainda sobre o texto, temos a perspectiva de um narrador “colado” na enfermeira, que na maior parte do tempo se refere à personagem como “ela”. Por que você optou por citar o nome próprio da personagem em tão poucas passagens do texto?  

Em parte porque a enfermeira está fazendo um trabalho, e por vezes parece que ela não enxerga os indivíduos. Alguns se perguntam se a enfermeira Chalmers sequer consegue enxergar a si mesma claramente. Sua presença é quase tão fantasmagórica quanto as presenças invisíveis que os personagens tanto parecem temer.

FERNANDA: No Brasil, algumas escritoras negras já pontuaram que sempre recebem a mesma pergunta (“Como é ser uma escritora negra no Brasil?”), e que gostariam que as pessoas transcendessem para outros assuntos que não apenas o da militância – uma vez que escritores brancos não são questionados sobre a questão racial. De que modo você se sente, tendo os seus textos como representantes de uma literatura feita por uma mulher negra e latino-americana?   

Isso não acontece comigo no Caribe anglófono, mas eu entendo por que acontece em lugares onde vivi e em alguns outros que visitei: se a comunidade negra não é a maioria, essas pessoas tendem a ser medidas em comparação com outros grupos raciais. Isso acontece porque a branquitude é, com frequência, considerada a norma. Isso também é um resultado do fantasma do colonialismo. Eu vou a Granada com frequência e sei que tenho histórias para contar em que ser branco não é a norma. Eu valorizo isso, porque é quem eu sou.

Quanto mais as pessoas lerem, mais elas vão perceber que determinada obra é uma experiência negra, uma experiência caribenha, e não a representação do todo. Se as pessoas lerem os meus trabalhos, e outros, e aos poucos começarem a perceber isso, me considero satisfeita. Quanto mais as pessoas leem, mais suas percepções mudam. Você não dá mais nome às coisas; você escuta. Você pode comentar. Pode não concordar. Você não vai mais ser conivente com uma forma de pensar que acredite equivocada só para não se incomodar com o tema.

FERNANDA: No Brasil, a literatura caribenha ainda não é muito difundida. Se você tivesse que indicar um(a) autor(a) caribenho(a) para o público brasileiro, quem seria e por quê? E, por outro lado, o que você conhece/mais gosta da literatura brasileira?

Existem tantos autores! Se pensarmos em todo o Caribe, tem a Évelyne Trouillot (Haiti); e sei que vocês conhecem pelo menos mais uma autora haitiana [ela se refere a Edwidge Danticat, publicada na Puñado 3].

Aqui em Maryland tem uma escritora chamada Lauren Francis Sharma, cujos pais são de Trindade e Tobago. Tem também a Ramabai Espinet, que vive no Canadá e também é de Trindade. E existem muito mais autores, tanto vivendo no Caribe como na diáspora.

Talvez um dos meus contatos iniciais com a literatura brasileira tenha sido o livro Pedagogia do Oprimido, do Paulo Freire. Também conheço a Esmeralda Ribeiro, mas não posso dizer que conheço a fundo a literatura brasileira. Gostaria de ler mais. E também queria contar que já visitei o Brasil. Em 2007, estive na conferência da Associação de Estudos Caribenhos em Salvador, na Bahia. Tenho interesse pelas histórias do Brasil. O Brasil é importante para a experiência caribenha – e, certamente, para os negros caribenhos, é uma parte chave na história do deslocamento dos africanos para essa região.


FERNANDA RODRIGUES é uma paulistana que ama gatos e café. Formada em Letras, pós-graduada no curso Formação de Escritores e Especialistas em Produção de Textos Literários do Instituto Vera Cruz, e pós-graduanda em Docência em Literatura e Humanidades na FMU. Publica no site Algumas Observações desde 2006, é moderadora do Projeto Escrita Criativa, tem textos em diversas antologias; e em 2019 publicou o livro de poemas A Intermitência das Coisas: sobre o que há entre o vazio e o caos (Editora Penalux) // As biografias de Merle Collins e das demais autoras da Puñado podem ser lidas aqui. // Tradução do inglês por Renata Torres.


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