BEATRIZ: Há uma parte do conto em que você fala um pouco sobre a pessoa que nós somos quando estamos sendo observadas ou em contextos sociais – as “novas roupas” que vestimos quando nossos pais estão em casa, por exemplo. Gostaria de saber como foi para você o período de afastamento social por conta da pandemia de covid-19: Quem você descobriu ser, longe do olhar dos outros? Como imagina que voltará para o convívio social após esse período?
Eu vivo em Guayaquil, que foi uma das cidades latino-americanas mais atingidas pela primeira onda de covid. Não falarei disso porque foi um assunto público e conhecido, mas acredito que nós, que caminhamos por cidades vazias vestidos como astronautas, ou que fizemos filas de três horas para comprar alimentos e pudemos ver pessoas brigando por um tomate, fomos forjados em um fogo a partir do qual não há retorno.
Sou de Guayaquil com tudo o que isso implica: neta de um avô imigrante que vinha da Suíça para o Chile, mas cujo barco quebrou. De cidade portuária; resistente ao calor; irremediavelmente otimista; resignada à boa vontade da saúde pública; tomadora de cerveja; e agora também sobrevivente de covid.
Existe uma linha muito curiosa que lê a América Latina numa chave apocalíptica, e eu acredito que posso ler a minha cidade como uma cidade de póstumos, que se equilibra em meio à morte e à violência sem se angustiar, pois essa realidade já faz parte de sua rotina. Ser de Guayaquil é escutar a música de uma festa longínqua e sentir que talvez tudo possa voltar a ser como antes, antes dos corpos extraviados e dos parentes mortos sem ritual funerário. É acreditar nessa ilusão.
Agora numa resposta mais trivial, aprendi a andar de bicicleta para percorrer distâncias curtas e assim visitar minha mãe aos domingos, quando a circulação de veículos estava proibida.
BEATRIZ: Iratí, personagem do conto, era ghost-writer e escrevia biografias de famosos importantes “que tinham algo a dizer”. Quais biografias você gostaria de escrever ou de ter escrito? Por quê?
Obrigada por ler com tanta atenção esse conto. Eu escreveria a biografia do meu avô, que era um personagem curiosíssimo. Vegano, nudista, aficionado à escrita. Fazia um pouco de tudo e foi muito mal compreendido pela família. Viveu no seu mundo e com suas regras. Agora entendo que aquele foi o meu primeiro vínculo com uma pessoa criativa, e que não o aproveitei. Era muito pequena quando ele morreu, mas eu teria gostado de uma oportunidade de conversar sobre sua vida, ter uma conversa de adultos. O tempo não nos ajudou e agora cabe a mim imaginar o avô que acredito que ele foi.
BEATRIZ: Cito uma autora que é referência para você – Shirley Jackson. Grande parte das histórias de Shirley exploram o horror doméstico, a barbárie íntima, utilizando elementos como a casa, por exemplo, que deveria ser um espaço de segurança e refúgio, mas que se converte em um lugar de perversidade. Como é possível tornar o medo uma potência para impulsionar a criatividade, sendo que, para algumas pessoas, o medo ou cenas como aquelas presentes na literatura de Shirley são paralisadores? Em outras palavras, como o medo pode nos tornar mais corajosas?
Na tradição oral os contos de terror nos ensinam a estar atentos, e a convivência com o sobrenatural é normalizada. Existe um conto de fadas chamado “La madre”, que é aterrorizante e ao mesmo tempo muito bonito. Ele nos consola sobre a perda dos filhos ao tratar da importância da resignação (quando as circunstâncias só apontam para isso).
A função tradicional do medo é, por um lado, nos mostrar que nem tudo o que habita o mundo é explicável pela lógica; que somos cataventos ao acaso, e que o acaso pode ser muito cego e muito cruel. Por outro lado, ele também nos ensina a estar preparados para o terrível.
O medo que me interessa vem carregado de outras coisas, como a vida e o humor, por exemplo. O medo é uma boa dupla para o amor, porque todos nós temos medo de perder aquilo que amamos. Não temos que ter preconceitos. O terror pode ser tão bom como qualquer arte, se tiver qualidade. O desafio está na originalidade.
BEATRIZ: A literatura distópica e o terror fazem parte de suas referências. Gostaria de saber se esse fato aponta para uma perspectiva pessimista do nosso futuro ou se é possível, a partir dessas bases, construir uma literatura de resistência.
Toda criação é um ato de resistência. A vida está desenhada para que não nos detenhamos a refletir, para que apenas executemos ordens de um sistema produtivo. O tempo pessoal, o tempo reflexivo e o tempo de criação devem ser conquistados com unhas e dentes. Dentro dessa lógica, claro que a intimidade, a arte e o ócio de onde nasce a arte formam uma trincheira de resistência, onde as pessoas criativas exercem o papel de rebeldes confrontando o já estabelecido.
Outra forma de ler essa pergunta me faz pensar que esses gêneros considerados B ou alienados foram, durante décadas, vistos como uma “literatura menor”. No meu país, o autor que escrevia romances históricos, ou que estava alinhado a um projeto político, era o autor respaldado pelo sistema. Os outros livros eram vistos como exercícios – que até recebiam simpatia, mas “vamos ver quando você escreve algo sério, rapaz”. Desde a década de 1980 vários autores e autoras se declararam dissidentes. Uns para ver se conseguiam, e outros porque uma pessoa criativa de verdade sempre põe à prova seus limites. A partir daí, esse tipo de literatura imaginativa e que experimenta possibilidades especulativas alçou voo. Sou convicta do potencial salvador da imaginação.
BEATRIZ: Há políticas para o fomento da literatura equatoriana? Como podemos criar estratégias para estimular a formação de escritoras e leitoras em países latino-americanos?
Eu trabalho em uma universidade pública, em cursos que todos os semestres recebem jovens movidos pela leitura e pelo desejo de escrita. É um projeto que foi se consolidando com o tempo – uma aposta alta, que sofreu muitos questionamentos: “Por que esses jovens estão estudando arte em vez de estudar economia?”. Bom, essa tem sido uma batalha campal há um tempo.
A potência da virtualidade nos tirou o corpo presente, mas também nos permitiu outras formas de diálogo. Houve uma multiplicação de blogueiros, youtubers, instagramers… muitos que produzem resenhas de qualidade. A leitura já não é somente a leitura de um livro físico. O importante é ter a sensibilidade porosa. Minha visão do futuro leitor não é negativa. Acredito na curiosidade.
BEATRIZ SOARES é mestra em Políticas Públicas pela UFABC, toca alfaia e busca poesia nas palavras e nos alimentos. // As biografias de Solange Rodríguez Pappe e das demais autoras da Puñado podem ser lidas aqui. // Entrevista realizada em agosto de 2021 e traduzida do espanhol por Marcela Katzin.