[ Uma conversa entre a colaboradora convidada Angela Mendes e a autora venezuelana Lena Yau. Esta entrevista foi realizada para a Puñado 6A, em 2019 ].

ANGELA: “Uma ilha é um parêntesis na monotonia do mar, como um lago é um parêntesis na monotonia da terra.” Achei essa frase muito poética e muito significativa. A literatura e a arte seriam parêntesis na monotonia da vida?

A vida não é monótona. Está mais para uma soma de quadros que vagam entre o sossego e os sobressaltos, as permanências e as metamorfoses, a vigília e os sonhos, as rotinas e os incêndios do cotidiano. A literatura e a arte se nutrem desse transcorrer cheio de espasmos, de surpresas, de matizes e de intensidades. Acredito que as expressões artísticas (literatura, artes plásticas, fotografia, música, dança) compõem um arquipélago nessa corrente que é viver. Ilhas que se comunicam entre si, ilhas onde se deter, observar, se alimentar, refletir, aprender e criar línguas novas.

ANGELA: Em que momento você entendeu que escrever era o seu ofício? A partir daí, como foi e tem sido sua jornada como escritora?

Não há um momento concreto. Sempre me comuniquei escrevendo, sempre traduzi situações em escritos, sempre li a realidade como poemas, contos, romances. Eu me lembro que, quando era menina, no caminho da escola, passava em frente a uma casa com um ático. Todos os dias eu olhava para o ático e pensava: “Quando for grande, eu vou morar nessa casa, vou ter um gato e vou escrever dentro do ático. Quando crescer, vou ser escritora”. Não moro nessa casa linda, que ficava em Caracas (e que não sei se segue de pé, pois nunca me atrevi a voltar nessa rua, porque me dá terror pensar em encontrar um prédio no lugar da ‘minha casa de escritora’) e também não tenho um gato. Mas escrevo, porque escrever é respirar, e não concebo outro modo de vida.

Não sei se sou a pessoa adequada para falar da minha trajetória; essa resposta talvez pertença aos críticos literários. De todo modo, acho que ela foi, por um lado, muito feliz e, por outro, insuficiente. Sempre queremos publicar mais, ser traduzidos, ser muito lidos. A insatisfação é o motor para seguir criando, seguir escrevendo, seguir procurando histórias, seguir pensando em contos e em poemas.

ANGELA: O Brasil tem pouco contato com a atual produção literária da América Latina – nesse ponto, a Puñado tem grande valor de resgate. Como você vê essa produção dentro da própria Venezuela e na América Latina? Existe contato entre os escritores do seu país e do entorno?

A Venezuela tem uma produção literária que se abre em dois ramos: a produção dos autores que vivem no país e a produção dos autores que formamos parte da chamada “diáspora”. A ditadura deu lugar a uma grande emigração.

Quando eu me radiquei em Madri, há 20 anos, o número de escritores venezuelanos não chegava à casa das dezenas. Hoje em dia, a cifra cresceu significativamente, e é comum ver a nossa literatura publicada por editoras espanholas.

Os escritores que permanecem no país seguem trabalhando com muitas dificuldades: não há papel e a vida diária é muito difícil. As editoras venezuelanas continuam publicando, ainda que o número de títulos anuais tenha esmorecido. As feiras literárias se viram obrigadas a suspender suas atividades. Só restou uma ativa, a Feira do Livro do Oeste. Temos escritores brilhantes dentro e fora do país.

Em relação à América Latina, vejo uma produção consistente, saudável, robusta. Gosto muito do que está acontecendo. Nós escritoras somos cada vez mais visíveis, ainda que nos reste muito caminho para percorrer. Tenho contato com os escritores venezuelanos e os da América Latina, em grande parte graças às redes sociais. Graças a essas ferramentas me informo sobre o que estão publicando e estabeleço relação epistolar com muitos deles. Essa comunicação gerou diversos projetos, que ganharam vida na forma de livros ou como exposições.

Com a Violeta Rojo, editora, escritora e especialista em micro-ficção, participei de ¡Basta! Cien escritoras contra la violencia de género. Com Magela Baudoin e Giovanna Rivero, escritoras e editoras, participei de Carne de mi carne, uma antologia em homenagem a Mary Shelley e seu Frankenstein, que reuniu autoras da América Latina. Com a artista plástica Carmen Herrera Nolorve, participei de Femme fractale, junto a 16 autoras ibero-americanas. A Carmen nos convidou para escrever nosso autorretrato, interpretou cada texto e transformou em gravura. Isso resultou numa exposição itinerante.

Na Venezuela, fui parte de Terra de otra voz, um projeto da Terra Gráfica. A Terra Gráfica aglutina um grupo de artistas plásticos venezuelanos em uma residência itinerante. Em Terra de otra voz cada artista interpretou visualmente os capítulos do meu romance Hormigas en la lengua. A partir daí, saiu uma exposição com 42 gravuras. Essas coisas só foram possíveis graças à comunicação que as redes sociais permitem.

ANGELA: O que eu gostei nos seus outros textos que li foi o caráter passional-fantástico, que relaciona a gastronomia ou a comida aos seus personagens, criando um universo totalmente particular. Em que momento você viu uma relação entre a gastronomia e a literatura, a gastroficção? (Gastroficção – achei ótimo o termo, que eu nunca havia visto).

As gastroficções são exercícios de escrita. Compreendem o poético e o narrativo, são de extensão curta ou média e giram ao redor da ingestão e do universo alimentar. São textos que olham para o que acontece antes, durante ou depois da comida, da cozinha, da alimentação.

Eu fui uma leitora precoce e, nas minhas primeiras leituras, minha atenção se fixava em detalhes pequenos associados à alimentação, à ingestão, aos sabores, ao gastronômico. Me lembro de ler contos infantis e dirigir o olhar para esses pontos. Me enchia de curiosidade o que a Chapeuzinho Vermelho levava na cesta para a sua avó, sonhava em saber de que doces era feita a casa que serviu de isca para João e Maria, me solidarizava com a Mafalda quando a obrigavam a tomar a sopa de que ela não gostava.

Com minhas leituras de adulta acontece o mesmo, mas além de detectar o relativo à comida, comecei a estabelecer uma rede de relações e padrões que se repetiam nos textos que lia e nos autores que os escreveram.

Quando fiz a pesquisa para escrever El sabor de la eñe, um glossário de literatura e gastronomia editado pelo Instituto Cervantes, me dei conta de que a relação dos escritores com a comida se reflete em suas ficções, às vezes de maneira evidente e descritiva e, em outros casos, subterrânea e simbolicamente. Três dos meus livros têm forte presença de elementos vinculados ao gastronômico e à ingestão: Hormigas en la lengua (Sudaquia, 2015), Trae tu espalda para hacer mi mesa (Gravitaciones, 2015) e Bienmesabes (Gravitaciones, 2018). Tenho uma relação muito complexa com a alimentação, que tento sublimar com a criação literária.

ANGELA: Como você vê os atuais governos na América Latina e seus supostos legados à cultura, literatura e afins? Você acha que temos saída?

Na Venezuela, a cultura e a literatura são atos de resistência. A ditadura, um regime totalitário, tentou apagar tudo o que existia antes dela. Os artistas e escritores que não se alinham ao poder “não existem”, são desqualificados, abandonados, perseguidos e, em muitas ocasiões, vetados. O regime pretende estabelecer um fazer cultural oficial alinhado com um pensamento único. Mas há coisas que não se conquistam, mesmo detendo o poder e sendo o dono das armas. Resiste-se, segue-se escrevendo, segue-se editando e segue-se criando, apesar deles. Por quanto tempo? Não sei. Espero que em breve possamos falar de um país livre, de um país para o qual seu povo retorna. Agora… bem, se nessas condições segue-se produzindo obras estupendas, o que virá em uma democracia será maravilhoso. Quanto à América Latina, é uma resposta muito difícil de se dar. Os governos mudam, a realidade se move.

ANGELA: Você se enxerga como influência para essa nova geração que conta com mais mulheres escritoras?

Tomara. Gostaria muito que fosse assim. Me vejo como uma escritora. O resto, a passagem do tempo dirá.


ANGELA MENDES é paulistana, formada em Artes Plásticas, trabalha como professora, artista gráfica e é sócia da Edições Barbatana. // As biografias de Lena Yan e das demais autoras da Puñado podem ser lidas aqui. // Tradução do espanhol por Laura Del Rey.


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