ESTELA: “Isto é chegar, deve ter pensado: adentrar o ruído. Aprender a ouvir. A falar. A contar.” Lendo essa passagem, vejo que não só a realidade de um estrangeiro é afetada pela língua, como a realidade da escritora é afetada pelo ruído deixado por sua família. Que ruídos marcaram sua vida de mulher escritora?
Raramente escrevo textos autobiográficos, então “Adentrar o ruído” foi uma experiência nova para mim, e que permitiu que eu me conectasse, a partir da literatura, com uma memória familiar muito poderosa. Escrevi o relato pouco tempo depois da morte da minha avó materna e me lembro de escutar repetidas vezes uma mensagem de áudio com a voz dela. Sua voz em castelhano, em árabe, em castelhano outra vez. Ouvi-la supunha recordá-la e reconhecê-la, mas também era conhecer uma mulher estranha para mim. A memória é assim: própria e alheia, herança e construção. Se assemelha, talvez, com a literatura. Com essa maneira de a literatura vez ou outra parecer muito próxima e em seguida completamente estranha. Nesse sentido, talvez toda escrita seja para mim uma maneira de ir desentranhando palavras do ruído; uma linguagem do ruído; uma beleza e uma melodia desse ruído – que, do contrário, pode ser ensurdecedor.
ESTELA: Tamara Kamenszain, ensaísta e poeta argentina, fala que é no contato com a mãe que a frase se desarma. Em seu texto, todo o tecido narrativo é construído pelas figuras femininas: bisavó e avó. Como você vê, sendo uma mulher escritora, as influências desse tecido de silêncios e oralidades construídas entre as mulheres de uma família?
Em “Adentrar o ruído” a memória familiar é transmitida pelas mulheres como uma sina inescapável: bisavó, avó, mãe, filha. Mas não acredito que deva ser assim, necessariamente. Nesse texto, o que me interessava era explorar uma herança verbal e não-verbal, ou seja, investigar como se transmitem (e como se perdem) palavras, gestos, histórias, silêncios. E como se constituem as heranças afetivas, sem que necessariamente sejam mediadas pela linguagem. Minha bisavó, por exemplo, tirou esse turbante que incomodava os outros, e foi preciso que se passassem décadas até que eu, que sequer a conheci, que não tenho nenhuma recordação direta dela e que não sou religiosa, escrevesse sobre esse gesto e sentisse, com atraso, seu desconcerto, inclusive sua raiva e minha própria raiva.
Existe algo que conecta a violência daquele então e a de agora, a sua feminilidade e a minha, o seu estrangeirismo e o meu, a sua maneira de ser mulher e a minha maneira de sê-lo – e essa conexão, que parece tão íntima, tão familiar, na verdade excede a esfera do familiar. Pouco tempo depois que escrevi esse relato, aconteceu o caso da jovem Siam, em Nice, forçada a tirar a roupa em uma praia por estar usando um burkini. Já haviam se passado 100 anos e, no entanto, a minha memória familiar se juntou poderosamente a essa mulher. A conexão, então, ainda que se origine no feminino familiar, extrapola essa esfera e deságua em uma desobediência e um modo de ocupar o espaço público que são extremamente contemporâneos.
ESTELA: “A história passa da minha bisavó à minha avó, à minha mãe, a mim.” Essa genealogia de mulheres marca a construção de uma mulher escritora, que cria os relatos e, assim, faz permanecer a história de sua família, como fazia a mãe oralmente. Que outras mulheres, além da família, te influenciaram e construíram sua carreira como escritora?
São muitíssimas as escritoras que admiro e leio com frequência. Entre as contemporâneas, recomendo enfaticamente a obra de Lina Meruane, tanto a ficção como a não-ficção. Seu trabalho com a linguagem é impecável. Também recomendo Nona Fernández e seu ofício de resgate da memória recente, e a prosa precisa e aguda de Alejandra Costamagna. E isso só para mencionar três chilenas contemporâneas, mas na América Latina de hoje há escritoras fenomenais.
Também foi fundamental para mim ler coisas de tradições distantes, sobretudo Herta Müller, que me deslumbra a cada vez que a leio; Christa Wolf, cuja obra Medéia achei magnífica; e Virginia Woolf, cujos ensaios mantêm uma vigência permanente.
No terreno dos ensaios, que leio cada vez mais, poderia falar também de Josefina Ludmer, uma intelectual argentina, e de Judith Butler, cujo olhar profundamente político e constantemente esperançoso permite desentranhar outro tipo de ruído desse presente que, vez ou outra, se torna tão desolador
NATASHA: “O mar dissolve a língua dos que viajam. (…) Palavras que se anteciparam a eles, que tinham viajado séculos antes para permear o castelhano.” Essas frases do seu relato dão o tom do que leremos mais adiante: um texto rico em detalhes que nos trazem a sensação de presenciar a construção de uma herança vinda de longe – herança que se junta a muitas outras para compor um todo. É a história de uma família, mas poderíamos dizer que é a história da América Latina. Essas heranças têm influência no seu trabalho? De que maneira? Como você acredita que essas diferentes origens influenciam o universo plural que chamamos de literatura latino-americana?
Desde bem pequena tive consciência de ser neta de imigrantes. É algo inscrito no meu nome e que me forçou a soletrar e explicar desde muito jovem que a minha família era diferente de outras famílias e que eu, portanto, também era. Esse “ser diferente” era algo de que me orgulhava – não por uma questão nacionalista, mas por uma consciência precoce de que a mistura é enriquecedora. Isso, acredito, é algo profundamente latino-americano, mas que hoje parece secundário diante do avanço de um nacionalismo obtuso, que nega a história, que nega nossa diversidade e nossas identidades híbridas. A literatura latino-americana é um reflexo maravilhoso dessas misturas. É incrível ler, por exemplo, as inversões do castelhano na obra da mexicana Fernanda Melchor, ou na de Yuri Herrera, e o mesmo pode-se dizer da literatura argentina ou da chilena ou da peruana. São tantos os castelhanos, tantas as possibilidades da língua, que o latino-americano parece se tornar infinito entre sua ancoragem ao passado e a seta que aponta para o futuro. Quanto mais leio, maior o continente me parece, mais ricas as nossas línguas e mais difícil, portanto, estabelecer cânones que buscam simplificar um lugar onde há tanta riqueza e diversidade, além de uma tradição interminável.
NATASHA: Em uma entrevista para a Fundación La Fuente, você menciona que “antes da escrita, muito antes, veio a leitura”. Como a escritora que você é foi desenvolvida através da leitura?
Minha mãe inculcou em mim um grande amor pela literatura. Ela é uma leitora extraordinária, e sempre dividiu os livros comigo. Então eu lia muito desde pequena, segui lendo quando adolescente, e agora leio com o mesmo prazer, com ainda mais voracidade. Eu não estudei literatura, e talvez por isso minhas leituras sejam bastante caóticas. Em algumas ocasiões, certa obscuridade austríaca me parece profundamente latino-americana, e certa literatura latino-americana, mais próxima à língua inglesa. Às vezes acho que eu deveria desordenar meus livros e colocá-los em uma ordem (ou desordem) afetiva: os felizes e os dolorosos, os serenos e os turbulentos; formar uma biblioteca afetiva, que é o que os livros passaram a ser para mim. Como amigos queridos (ainda que às vezes complicados!), para os quais se volta de vez em quando.
NATASHA: Considerando a sua trajetória profissional, como foi sua jornada de advogada a escritora? Como essas profissões coexistem na sua rotina? Existem momentos em que elas se cruzam?
Na verdade, jamais coexistiram. Eu nunca exerci a profissão de advogada. Estudei direito e terminei o curso, mas, desde que me formei, nunca olhei para trás. De fato, durante muitos anos, me senti um pouco complexada por não ter estudado letras. O curioso aconteceu anos mais tarde. Depois de publicar La resta, meu primeiro romance, escrevi um livro de ensaios sobre casos emblemáticos de mulheres assassinas e como eles foram representados por diferentes obras artísticas. Ao examinar essas obras, ficou evidente para mim que elas tinham algo muito específico do direito: a normatividade. E acho que o meu olhar em relação à literatura está muito tingido por esses princípios disciplinantes. A literatura não me parece um campo necessariamente subversivo e livre. Acho que parte dela pode ser profundamente conservadora e inclusive preceptiva, e acho que esse olhar vem dos meus anos como estudante de direito; de uma consciência incomum sobre como e onde se configura o “normativo”. Por mais que eu o renegue, o direito reaparece – e, quando isso acontece, eu só encolho os ombros e vejo se ele pode lançar uma luz nova sobre o que estou lendo ou escrevendo.
ESTELA ROSA é poeta e caipira, nascida em Miguel Pereira, região serrana do Rio de Janeiro. Foi finalista do Prêmio Rio de Literatura 2018 e esteve entre os três primeiros lugares na categoria poesia do Prêmio Off Flip de Literatura em 2017. É curadora na iniciativa Mulheres que Escrevem e atualmente vive na cidade do Rio de Janeiro. NATASHA R. SILVA é jornalista, escritora e aprendiz de programadora. Formada em Jornalismo pela UFRJ e mestre pela Escuela de Periodismo UAM-El País. Atualmente é freelancer com base em Lisboa e estudante de desenvolvimento para web. É uma das criadoras e editoras de conteúdo da Mulheres que Escrevem. // As biografias de Alia Trabucco Zerán e das demais autoras da Puñado podem ser lidas aqui. // Tradução do espanhol por Laura Del Rey.