LETÍCIA: Ao longo do conto, o cotidiano toma a cena, como na decisão da personagem de cozinhar o frango inteiro, ou no ato de empilhar pratos sujos – que fazem parecer que tudo estava normal. No entanto, o insólito está logo ali, no jantar. Como o terror se manifesta dentro do cotidiano?
O insólito pode ser apenas um susto, mas o que nos dá medo de verdade é sentir que as coisas não estão como sempre, que as pessoas conhecidas se tornaram desconhecidas (a loucura e a doença nos dão medo); há uma espécie de sensação de perda nisso. E o que perdemos é a tranquilidade, a fantasia de que as coisas serão sempre de uma certa maneira. Essa fantasia, que parece absurda, serve para viver e não entrar em pânico. Eu acredito que convivemos com o estranho o tempo todo, mas às vezes prestamos atenção nele e às vezes não.
LETÍCIA: Uma das frases do texto nos faz pensar sobre o terror e o cotidiano, já que pode ser contextualizada tanto nos acontecimentos mais banais como nos mais extraordinários: “Coisas do destino”. Como a escrita, para você, pode ser definida como “coisa do destino”?
Não sei bem o que é o destino. É uma palavra que não costumo usar. A frase se referia ao encontro entre dois personagens que não se veem há muito tempo e que se cruzam em um corredor do metrô. Esse encontro me soava bem porque tinha outras conotações – o fato de ser embaixo da terra, nessa espécie de infra-mundo que é o metrô, funcionava como uma premonição. Sinto que a escrita tem mais a ver com esse encontro inesperado do que com o destino. Escrever é muito sobre trabalho, mas também é isso, algo que não procuramos e que, de repente, acontece.
LETÍCIA: Apesar de ter publicado no livro Osario común: Summa de fantasía y horror, você diz não se considerar uma escritora do gênero horror. Como definiria, então, a sua escrita? Você acha que afirmar o horror solapa a potência do suspense e de um insólito que é mais do que um terror?
Não me sinto uma escritora de gênero. Escrevi alguns textos por encomenda para antologias que acabaram servindo como desculpa para eu escrever sobre coisas que me interessavam. No caso do conto “O sentinela”, lembrei de uma história que o meu sogro tinha me contado sobre a sua época de reservista. Ele cresceu em uma cidadezinha de Tucumán que já não existe mais, entre o campo e a colheita, e quando fala da Marinha, faz isso com orgulho, o que incomoda muito seus filhos. É um homem provinciano que valoriza a disciplina, as hierarquias, a lealdade. Também é um grande contador de histórias. A do reservista suicida era uma história poderosa, cheia de tragédia e de afeto. Em cima disso, acrescentei minhas coisas; as mulheres que buscam sentido para suas vidas, a solidão dessas mulheres, os pactos estranhos em que se baseia uma convivência, certo absurdo do cotidiano (dizemos e fazemos coisas absurdas o tempo todo).
LETÍCIA: Seu conto trabalha com o terror através da sugestão, da construção do suspense – e os detalhes saltam aos olhos na segunda leitura, já que nada é dito de fato. É a tensão da sutileza. Você diria que essa é uma forma de trabalhar o terror característica da literatura latino-americana? Qual a potência e a importância do trabalho com o insólito e o terror na literatura escrita por mulheres?
O detalhe, para mim, é tudo. Somos o que vemos, e o que vemos é algo pontual – que por sua vez faz parte de algo maior. Para mim o detalhe está repleto de mistério, de revelação. Gosto, também, da tensão que se insinua, de uma certa sensação de perigo, de que algo está por acontecer. Não sei se essa é uma característica do terror latino-americano. Tem algo de violento e desordenado que vem das lendas, da mitologia, da mistura religiosa com a realidade política… as ditaduras, por exemplo.
Como não sou uma escritora de gênero, me desloco com certa impunidade, sem levar muito em conta as convenções nem as transgressões. Também não sou uma leitora focada em gêneros. Acredito que há uma literatura escrita por mulheres que vem se destacando e que ninguém estava esperando. Talvez isso tenha dado mais liberdade a elas.
LETÍCIA: “(Onde ninguém o esperava)”. O que você não espera?
Que pergunta! Não sei. O melhor seria não esperar nada, mas sempre estamos esperando alguma coisa, e isso nos deixa infelizes. Às vezes não esperar é uma boa conduta; as coisas saem melhor sem tanta expectativa.
LETÍCIA PILGER DA SILVA é graduada em Letras e mestre em Estudos Literários pela UFPR. Pesquisa crítica literária feminista e trabalha como revisora e professora de redação. // As biografias de Alejandra Zina e das demais autoras da Puñado podem ser lidas aqui. // Tradução do espanhol por Laura Del Rey.