PUÑADO: Sinto que a sua escrita tem um forte apelo sensorial: cheiros, cores, detalhes visuais, o movimento dos corpos… vão criando a atmosfera dos espaços e dos tempos. Você poderia comentar um pouco como trabalha os elementos de uma cena, ao escrevê-la? Se há um planejamento, por exemplo, de inserir mais ou menos diálogos… ou se o processo acontece de maneira mais natural? Ainda nesse sentido, você acredita que, ao longo do tempo, essas suas características se mantiveram, se acentuaram ou foram se alterando?
Eu realmente tento incluir o máximo possível de detalhes sensoriais no meu trabalho. Em parte, isso tem a ver com o fato de que escrevo sobre uma época e uma cultura com as quais muitos dos meus leitores podem não estar familiarizados. Então, preciso levá-los até lá através de todos os detalhes que eu puder. Nessa história, por exemplo, precisei colocar o leitor dentro de um apartamento do sul do Bronx nos anos cinquenta – o tipo de perfume que se usava, a vidraria sobre a mesa, o cheiro dos casacos úmidos, a filha dançando com o pai, a programação da televisão… Eu quero que ouçam a língua, provem os sabores e ouçam a música da ilha e sejam transportados até Nova Iorque através das vidas dos imigrantes.
Para mim, o enredo vem antes. Depois, eu volto e utilizo as minhas ferramentas literárias para fortalecer a narrativa. Com o passar dos anos, aprendi a confiar na minha intuição. Escrevo de forma orgânica, confiando que o enredo vai se revelar por si mesmo. O enredo vem do meu subconsciente, ou da minha musa; e os recursos literários, que são impostos mais tarde, vêm da minha mente lógica. Mas o enredo é a essência. Felizmente, quanto mais eu escrevo, mais internalizo várias dessas técnicas, então hoje o processo de revisão é bem menos exaustivo. Mas nunca é fácil.
A língua é muito importante na minha escrita, porque escrevo fundamentalmente em inglês americano do século XX sobre eventos que aconteceram em espanhol porto-riquenho do século XIX. Então, eu sempre preciso dosar quanto da língua nativa posso utilizar. Eu não traduzo dentro de um texto, se achar que a utilização do espanhol dá a ele autenticidade. Porém, estou sempre consciente do leitor que não está linguística ou culturalmente familiarizado com o mundo que quero criar. Por isso, me empenho muito em oferecer indícios e contexto, para permitir que esse leitor saiba o que está acontecendo, mesmo se ele ou ela não falar espanhol.
TATIANA: O seu conto alude tanto aos matizes culturais porto-riquenhos, através das referências à comida, à música e às festas, como também à condição social e financeira de uma família de imigrantes negros nos Estados Unidos. Ser um imigrante latino−americano é um pouco essa mistura: nunca conquistar completamente o “american way of life”, mas também não perder jamais os hábitos comuns e cotidianos da sua origem?
Sim, eu me vejo como um híbrido. Nunca serei totalmente uma coisa, nem outra. Algumas vezes, essa pode ser uma posição desconfortável, mas também é extremamente enriquecedora. Eu me defino como uma “novarriquenha”, no melhor sentido da palavra. Quer dizer, minhas rotinas diárias são as de uma nova iorquina. Eu floresço com a energia e com a diversidade da cidade. Gosto da eficiência e da agilidade. Gosto da oferta de arte e dos eventos culturais, do sabor internacional da cidade. Não me imagino morando em qualquer outro lugar durante um longo tempo.
Por outro lado, Porto Rico é o meu lar espiritual. É o lugar para onde vou quando preciso me recuperar e ser acolhida. Me dá chão. Tenho que me lembrar de desacelerar quando estou lá; tirar um tempo para relaxar e desfrutar das pessoas e lugares da minha infância. Tudo em Porto Rico me parece familiar, desde o momento em que ponho o pé para fora do avião: a cadência da língua, a familiaridade e a cordialidade das pessoas, a civilidade, o senso de humor, a música, a comida, a crença numa verdade ancestral. Não conseguiria viver sem essas coisas na minha vida. Por isso, viajo muito para lá e para cá. Acredito que, para ser uma coisa, não preciso deixar de ser a outra.
TATIANA: [O conto] “Memórias sépia”, mas também Daughters of the stone [romance da autora] são narrativas cujo eixo temporal é o passado. Segundo a sua experiência e vivência, o que se manteve igual e o que mudou na vida de uma mulher negra latino−americana nos Estados Unidos, em comparação a quando você chegou lá, ainda criança?
Acredito que todos os imigrantes, antes e agora, vêm com a mesma motivação: melhorar de vida. E vêm com as mesmas esperanças e aspirações para os seus filhos. Isso bate de frente com o racismo e a desigualdade econômica que encontram ao chegar aqui.
As disparidades enfrentadas hoje pelos imigrantes negros são as mesmas que as do passado, com a única diferença de que agora ela é sustentada por muitos dos nossos líderes políticos. Nesse sentido, acho que o dia a dia deve ser mais difícil, porque a civilidade em nossa sociedade tem sido fomentada por gente que alimenta o medo e o ódio. E a nossa tecnologia tem levantado e ampliado todas as nuances disso, causando enorme tensão e dor.
Mas, na vida privada, nós imigrantes continuamos lidando com as mesmas questões – valores familiares, relações amorosas, a expressão do amor como um antídoto para as forças exteriores, a necessidade de transmitir valores culturais que podem não ser apreciados no novo país, a pressão sobre os jovens para que naveguem entre duas realidades (dentro e fora de casa), o desejo de criar uma vida melhor para a próxima geração, o medo de perder a sabedoria do passado. Essas são precisamente as características que nos permitirão resistir, como fizemos no passado.
Essa é a razão pela qual escrevo sobre o que veio antes. Sempre tivemos desafios. E sempre sobrevivemos, porque estamos construindo uma fundação extremamente resiliente, assentada pelos nossos ancestrais.
TATIANA FARIA é mestra em literatura hispano−americana pela USP, editora e tradutora do espanhol. Atualmente vive em Londres. // As biografias de Dahlma Llanos-Figueroa e das demais autoras da Puñado podem ser lidas aqui. // Tradução da entrevista e do conto “Memórias sépia” por Laura Del Rey.