ELLEN: Suas obras transitam entre muitos gêneros. Algumas são mais definidas: trata-se de um livro de ensaios, de um romance, de um livro de contos. Em outros casos, como Nadie me verá llorar; Había mucha neblina o no sé qué; Autobiografía del algodón; e El invencible verano de Liliana, a própria obra contempla um híbrido de gêneros textuais/ artísticos/ literários, uma mescla de recursos. Nos perguntamos: Será que é um livro de testemunhos, um relato de viagem, uma ficção, uma biografia? Seja como for, todos os seus livros parecem demandar muita pesquisa, metodologia e, principalmente, muita leitura. Isso é um costume seu pela carreira acadêmica como historiadora? Como você escreve um livro? Como funciona seu processo desde a ideia, passando pela escrita, até a entrega da obra ao editor, ou até mesmo quando o livro vai para a gráfica?
A pesquisa é um trabalho de cuidado. Toda escrita requer esse cuidado, que qualquer espécie de pesquisa implica – seja acadêmica ou autorreflexiva, estatística ou de campo, ou de outro tipo. No meu caso, já recorri a arquivos (tanto institucionais como pessoais), entrevistas, registros feitos em pesquisas de campo, observação sistemática… estratégias que permitem chegar mais perto dos materiais de estudo com o cuidado que merecem. Há sempre um enigma no início de um trabalho – algo que não consigo responder apenas com a experiência cotidiana. É preciso que seja profundo e intrigante o suficiente para me fazer retomá-lo diversas vezes, com abordagens distintas para tentar resolvê-lo. Meus livros normalmente começam com perguntas amplas e complexas – o tipo de pergunta que exige ferramentas e saberes inter ou transdisciplinares para ser atendida. Leio tudo o que posso sobre o assunto e o que foi escrito a respeito dele, tanto teoricamente como em termos de escrita criativa. E, pouco a pouco, as palavras vão surgindo.
Um livro pode prescindir de paisagens, trama, personagens, mas não pode prescindir de um posicionamento em relação à linguagem.
Escrevo muito e apago muito, mas é frequente eu deixar minhas borrachas descansarem por semanas ou meses inteiros. Às vezes chego a me esquecer de seu propósito ou de onde as deixei. Talvez por isso eu trabalhe, em média, em dois ou três projetos por vez. Daí é questão de ter ou fazer tempo: umas três ou quatro horas pela manhã para produzir, umas tantas horas à tarde para revisar. No meio, uma boa comida e uma bela caminhada. É preciso estar em boas condições para se escrever um livro. (Caso lhes interesse, acabei de publicar um ensaio sobre o assunto na Este País, de distribuição gratuita na internet. Se chama “Los noriginales”).
ELLEN: Fico pensando sobre como não conhecemos o outro e tampouco a nós mesmos. Nessa era da superficialidade da imagem e das redes sociais, todos também acabamos por ter uma personalidade (ou uma persona), no mínimo, dupla. Muitos dos seus textos trazem essa figura do duplo. O que essa representação significa para você ou a que ela lhe remete? Por que você acha que esse elemento ainda é tão trabalhado na ficção (literária, cinematográfica, televisiva)?
Só me dei conta da presença desses duplos, que aparecem sobretudo nos meus contos, recentemente. Há paralelismos, semelhanças, cumplicidades que se expressam nesses desdobramentos. Ainda que eu me proponha a explorar meus materiais exaustivamente, estou ciente de que a aproximação nunca é total. Isso nem possível, nem desejável. Entre nós e as nossas produções está o ângulo de aproximação, a materialidade própria da linguagem.
ELLEN: O tema desta edição da revista Puñado é instinto. Para você, o que aproxima e o que distancia os humanos dos animais; dos outros seres? E o que é instinto? O instinto estaria ligado a uma animalidade, a uma humanidade…? Por quê? Como esse tema aparece em suas obras?
Concordo com John Berger quando ele diz que o que nos separa dos animais é a relação que temos com os nossos mortos. É comum ouvir as pessoas se referirem ao sexto sentido como uma espécie de instinto. Acredito que, em ambos os casos, estamos falando de uma forma concentrada de atenção. Tudo se torna misterioso quando nos atentamos às coisas. Tudo: novo, enigmático, específico. O instinto também é uma capacidade do corpo; ou melhor, uma educação do corpo.
ELLEN: A cada dia a realidade parece ter mais elementos de ficção em seu cotidiano. Ou, quem sabe, sempre tenha sido assim, mas só alguns o enxergavam. Josefina Ludmer, há 20 anos, já dizia que a literatura caminhava para ser uma escrita pós-autônoma. Você acha que a realidade e a ficção se retroalimentam? São a mesma coisa? Onde está a diferença, a distância? Qual o papel da linguagem nessa ponte?
Já citei muitas vezes esse início do ensaio de Ludmer sobre as literaturas pós-autônomas: não importa se elas são ou não literárias, se são ou não reais. Sua função é produzir presente. Me interessa pesquisar essa adjacência: o espaço que se abre, de maneira inexorável, entre nós.
A ficção é, no fim das contas, em seus momentos mais felizes, uma operação de empatia que levamos a cabo na linguagem.
ELLEN: Apesar de ter diversos livros e contos com elementos evidentemente latino-americanos, você também transita pelos tempos e espaços globais. Em El mal de la taiga, por exemplo, a narrativa nos leva a outras regiões, outros bosques, bem diferentes das florestas da América Latina. Apesar de eu nunca ter ido lá, sinto que “viajei” à floresta negra da Chapeuzinho Vermelho na Alemanha, ou a matas ainda mais geladas e nórdicas. Como você vê esses dois movimentos epistêmicos/ culturais/ artísticos/ literários: o da decolonialidade, que visa à produção e à distribuição do conhecimento a partir da cultura local, do subalternizado, das comunidades indígenas, populares, periféricas (e não mais da episteme eurocêntrica); e uma certa globalidade produzida pelo capitalismo atual, que acaba por aumentar as migrações, diminuir as diferenças culturais e extinguir traços locais?
Interessa-me mais a planetaridade de que falava Spivak – como uma capacidade dos sujeitos terrestres – do que a globalidade – um aspecto que se associa mais à capacidade de trânsito das mercadorias. Aprendi, com os praticantes da infrapolítica, a questionar o aspecto identitário do discurso decolonial e a insistir em abrir espaço para a pergunta sobre a acumulação (para além das noções de hegemonia) e sobre a justiça.
Me importam muito, assim como a todos que não deixam de reiterar os perigos do capitaloceno, o que sujeitos humanos e não humanos, vivos e não vivos, fazem no nosso mundo cotidiano e nos nossos livros. Em uma série de ensaios ao redor do que acabei por chamar de escritas geológicas, dediquei bastante atenção às relações sempre tensas e ricas entre os territórios e os corpos, especialmente nesse contexto de emergência em que vivemos, um tempo de grandes extinções.
ELLEN MARIA VASCONCELLOS é editora de livros didáticos e literários; além de ter traduzido autores como Ben Lerner, Cesar Vallejo, Natalia Litvinova, Sara Gallardo, Romina Paula, entre outros. Ministra cursos e escreve artigos científicos e não acadêmicos em revistas brasileiras e internacionais. É bacharel, licenciada, mestre, e atualmente doutoranda na USP, onde investiga a literatura contemporânea escrita nas Américas e sua relação com diversos tipos de catástrofe. Autora dos livros de poemas Chacharitas & gambuzinos e Gravidade, ambos publicados pela Editora Patuá. // As biografias de Cristina Rivera Garza e das demais autoras da Puñado podem ser lidas aqui. // Entrevista realizada em julho de 2021 e traduzida do espanhol por Laura Del Rey.