Na Puñado 6 publicamos uma homenagem à autora mexicana Margo Glantz, constituída por um ensaio-biografia, fragmentos de seus livros e uma entrevista. O material foi proposto por Fernanda Lobo, pesquisadora da obra de Glantz, que também cuidou das traduções (exceto do fragmento de Aparições, gentilmente cedido por Paloma Vidal). Deixo abaixo o ensaio, para abrir os paladares.
Folhear rapidamente um livro de Margo Glantz é ter os olhos repicando em expressões de campos semânticos muito diversos, sem tempo de se demorar em um ou outro. Em seus livros, você lerá en passant, por exemplo, termos como John Travolta, Bach, McDonald’s, Francis Bacon, King Kong, salão de beleza, Louis Vuitton, dentadura, osso sacro, colibri, amor, juventude, nomes científicos de raças de cachorros… Talvez até tudo isso em um único trecho – e mais um sem-número de associações que acontecem enérgica e simultaneamente, como a vida mesmo.
Glantz é uma escritora nascida em 1930, na Cidade do México, filha de pais ucranianos e judeus que precisaram migrar para a América no começo do séc. XX. Nasceu filha de estrangeiros. O pai era um poeta que escrevia em iídiche, o que a impregnou de uma condição transculturada, entre línguas e culturas paternas e a cultura mexicana. Talvez esteja aí a origem da poética de trânsitos, deslocamentos discursivos e registros distintos que a autora cultiva em seus textos literários. São textos de difícil classificação, que oscilam, por exemplo, entre autobiográficos, biográficos, relatos, relatos de viagem, ensaios (críticos e ficcionais) etc.
Em diversos de seus escritos autobiográficos, a escritora conta que sempre foi uma leitora dedicada e apaixonada. Lia os clássicos enquanto ajudava os pais nos mais diversos ofícios em busca do sustento. Em Yo también me acuerdo – livro de memórias à maneira de I remember, de Joe Brainard, e de Je me souviens, de Georges Perec, composto por instantâneos de memória de poucos caracteres (mais ou menos como um tweet) – a escritora conta que, quando tinha dez anos, passeava com o pai, Jacobo Glantz, por Coyoacán, e que diziam que ele era Trotski, devido à semelhança física entre ambos. Conta ainda que, em 1939, seu pai foi linchado por seguidores de Hitler por essa mesma razão, um ano antes do assassinato de Trotski na Cidade do México. Glantz se lembra também de que, quando era criança, no Vale do México, ainda havia lagos: Texcoco, Chalco, Xochimilco; por ali “ainda se podia caminhar”.
Depois de cursar Letras ali mesmo, mudou-se para Paris, onde fez o doutorado. Estudiosa da obra de Sor Juana Inés de La Cruz, a quem chama carinhosamente de “mi caballito de batalla”, orgulha-se de haver ocupado a mesma cadeira que Juan Rulfo na Academia Mexicana de la Lengua. Foi professora de Literatura e Teatro na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) por mais de 60 anos, e tem uma vasta obra crítica – tanto da literatura mexicana, quanto universal.
Começou a escrever ficção relativamente tarde, porque, segundo conta, o tipo de ficção que fazia não era bem aceito no México à época. Talvez porque tenha sido – e ainda seja – uma escritora que viu antecipadamente questões incomuns à literatura daquele momento. Releu textos clássicos mexicanos por uma perspectiva inédita, mostrando-se pioneira em dar relevância a questões hoje muito visitadas, como a do corpo feminino na literatura. Glantz defendia que, na literatura mexicana do séc. XIX, o corpo feminino era manipulado pelos escritores, ocupando um lugar de objeto; e que, a partir da industrialização e da urbanização no início do séc. XX, esse corpo tornou-se não apenas um objeto, mas principalmente um objeto de consumo.
Observou ainda que as mulheres na literatura do séc. XIX possuíam seios, mas não dentes; uma cintura finíssima, mas não joanetes; e que as palavras escolhidas para descrever seus corpos eram sempre da ordem da sensualidade ou da sacralidade, porque eram palavras provenientes de um olhar externo (no caso, masculino), que Glantz afirmava mutilar seus corpos. Esconder partes e romantizar outras seria uma espécie de mutilação simbólica.
Um exemplo disso está presente no romance Santa, de Federico Gamboa, publicado em 1903, cuja personagem principal é uma prostituta. Segundo demonstra Glantz, em um de seus ensaios, a protagonista de Santa não apenas viveu e morreu por sua profissão, mas também fez a fortuna de Gamboa, o autor, e até a de Agustín Lara (famoso compositor e intérprete mexicano, que compôs canções em “homenagem” à prostituta). A escritora afirmou ainda que, após a derrocada do Porfiriato (regime ditatorial imediatamente anterior à Revolução Mexicana), Gamboa teria vivido na miséria se a sua personagem não seguisse lhe rendendo lucros – como havia rendido à casa de Elvira (o bordel em que trabalhou no texto ficcional). Glantz afirma que “Gamboa foi seu gigolô, como Zola foi de Naná, Alexandre Dumas de Marguerite Gautier e Prevost de Manon Lescaut”.
O único livro de Margo Glantz disponível em português é Aparições (1996), traduzido por Paloma Vidal e lançado pela Editora Autêntica, em 2007. Nesse texto, que é fruto de uma investigação sobre as freiras mexicanas do séc. XVII, o trabalho de escrita, o erotismo e a autoflagelação religiosa caminham juntos. Mística e erótica são aproximadas, corpo e espiritualidade se encontram em uma ficção bastante irreverente, considerando-se a forte moral católica ainda vigente no país. Glantz rejeita a ideia de oposição entre corpo e espírito, legado do cristianismo, ou entre corpo e intelecto, legado cartesiano, e faz disso uma experiência estética.
A escritora também trabalha a imagem do corpo feminino como “corpo que circula”. Considera-se uma viajera profesional, e talvez por isso mesmo sua escrita traga em si movimentos que oscilam entre um saber muito mexicano e temas e formas internacionais. Algumas de suas anedotas clássicas referem-se a viagens que realizou sem câmera fotográfica, apenas munida de seu bloco de anotações, no qual fazia registros escritos.
Mas nada disso acontece sem tensões e torções na linguagem. E a saída é frequentemente o senso de humor, um certo modo de transformar assuntos solenes em bobagens e imbuir as frivolidades cotidianas de possibilidades estéticas. A capacidade de transitar, escorregar e escorrer entre identidades, saberes e lugares é o principal motor de sua escrita, o que a preenche de uma riqueza também desestabilizadora dos lugares comuns da literatura.