_Alba
Eiragi
D. Portillo

    Professora, promotora cultural e líder indígena, nascida em Curuguaty, Paraguai, em 1960. Tem ascendência Aché e cresceu em uma comunidade Avá-Guarani em Colonia Fortuna, departamento de Canindeyú. É graduada em Comunicação e Serviços Sociais e diplomada em Educação Intercultural. Seus livros incluem a coletânea de poemas Ñe’ e yvoty, Ñe’ e poty (Arandurã, 2016) e a coletânea de contos Ayvu tee avá guaraní (Arandurã, 2020). Em 2017, Alba foi a primeira mulher indígena a se tornar membro da Sociedade de Escritores do Paraguai. Em 2018, apresentou seu trabalho no 28º Festival Internacional de Poesia de Medellin, dedicado às vozes e visões dos povos nativos das Américas. Seus poemas e histórias já foram compilados em diversas publicações nacionais e internacionais.

     

    [ INTRODUÇÃO À OBRA DE ALBA EIRAGI por Elisa Taber ]

    O Paraguai é o único país latino-americano oficialmente bilíngue em espanhol e uma língua indígena única, o guarani. Desde a colonização do país no século 16, a cultura guarani vem assimilando elementos estéticos espanhóis – o que resultou na chamada mestizaje, um apagamento de alguns de seus códigos culturais menos estáveis. Devido a isso, o linguista Bartomeu Melià chegou a alegar que o guarani falado e escrito hoje em dia pela maioria da população paraguaia é, de certa maneira, uma língua colonial espanhola, ainda que transfigurada.

    Dentro da família tupi-guarani existem seis línguas: mbyá, avá guarani, pãi tavyterã, guarayo, guarani ñandéva e aché-guayakí. Além delas, há a jopara, neolíngua que mescla o espanhol e o guarani. A maioria dos autores paraguaios contemporâneos trafega entre essas duas últimas, ou seja, entre a tradição oral e a literatura escrita, entre cosmologias indígenas e coloniais. Cabe ainda ressaltar que algumas palavras em guarani são intraduzíveis (por serem sagradas e servirem ao propósito de convocar entidades míticas).

    O livro Ayvu tee avá guaraní é uma coleção de histórias sagradas escritas em avá guarani por Alba Eiragi Duarte Portillo, que também as ilustrou e traduziu para o jopara e o espanhol. Suas escolhas líricas e estruturas narrativas míticas tecem outros tipos de ordem e refletem a existência em um mundo tão frágil quanto complexo, parcialmente inexplorado devido à sua aparente simplicidade. As peças contidas nessa coleção podem ser divididas em instruções sagradas e mitos de origem. O que é ordinário parece misterioso e vice-versa.

    As instruções explicam como preparar alimentos e bebidas e fazer artefatos – como adornos, redes e maracas. O comum se torna sagrado através de procedimentos que, à primeira vista, podem parecer supérfluos e independentes entre si. Como exemplo, as instruções para preparar kaguyjy, chicha, que detalham o necessário – cereais, vegetais e mel fermentado por três dias – e o “desnecessário” – uma tigela de cedro, uma casa limpa e canções de alegria, bênção e generosidade.

    Os mitos, por sua vez, descrevem as origens da fauna e da flora, assim como dos três elementos clássicos tupi-guarani: orvalho, névoa e água. O misterioso torna-se explicável pela ficção – por exemplo, a origem da água, que é contada através da história da criação do sol, da lua e de um rio para afogar os maus espíritos da terra.

    As coisas recebem vida ao serem nomeadas. Assim, o cuidado com a linguagem é essencial na família tupi-guarani, já que ñe’ significa tanto “palavra” quanto “alma”. Somado a essa especificidade, há ainda o fato de Doña Alba utilizar um vocabulário particular, alternando suas escolhas entre termos concretos e abstratos – numa dualidade que reflete precisamente o conteúdo.

    Suas temáticas são divididas entre as representações do mundo material e espiritual. A simplicidade com que Eiragi aborda conceitos complexos é alcançada através da preferência por palavras coloquiais e narrativas sucintas. Creio que suas instruções sagradas e mitos de origem podem ser melhor compreendidos como ensinamentos. Neles, Alba descreve como o passado moldou o presente e prenuncia de que modo ele afetará o futuro.

    A forma como a autora escreve pressupõe o princípio moral de que podemos usar a potência da linguagem para a gentileza em vez da crueldade. E para a pergunta que ela instiga nos leitores (“O que é sagrado?”), arrisco uma hipótese: Quem sabe o sagrado não seja uma vida levada de maneira a favorecer a existência de outros seres em outros tempos e espaços?

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