[ Uma conversa entre a colaboradora convidada Julia Codo, a artista panamenha Melanie Taylor e nós da Puñado. A entrevista foi realizada em 2018 e integra a Puñado 5. O conto de Melanie traduzido e publicado se chama “A falta de ficção” ].

PUÑADO: Como você maneja seu tempo de trabalho e de criação musical e literária hoje em dia? Quer dizer, como é um mês “normal” na sua vida? Quais são as coisas que te inspiram e como você se organiza com seus múltiplos talentos?

Um dia normal começa às 4h da manhã. Tenho ensaio na Sinfônica Nacional, onde toco na seção de primeiros violinos às 7h30. Para chegar a tempo, saio de casa às 5h. Meu marido e minha filha ainda dormem. Os ensaios terminam às 10h30. Moro em Chorrera, uma cidade satélite à oeste da Cidade do Panamá. Grande parte do meu trabalho é tocar como freelancer em eventos corporativos e festas privadas. Faço um repertório de música comercial pop e eletrônica que hoje em dia está na moda. Alguns meses escrevo, em outros nada. Nos últimos anos minha maior produção tem sido de microcontos, mas não tenho tido constância ao escrever. Obviamente, criar a minha filha é uma prioridade. Tenho tido que aceitar que haverá meses nos quais não poderei escrever.

JULIA: No Brasil, infelizmente, conhecemos muito pouco da realidade social e histórica do Panamá. É esse o país “de onde os escritores foram exilados” no conto? Em que contexto ele foi escrito?

O texto surgiu de outros relatos. Já não me lembro do que estava lendo naquela época, mas é um contexto universal. Os ditadores e extremistas temem todos que produzam e cultivem um pensamento crítico ou um sistema de ideias coerente que entusiasme. Até no Facebook dá para ver. Quando uma pessoa não concorda com o pensamento no mural de alguém e se manifesta, começa uma guerra verbal. Nos repugna que o outro pense diferente do nosso sistema de ideias, nos enche de raiva. Imagina como fica isso quando se tem poder!

JULIA: É possível relacionar o texto ao Brasil atual, onde a realidade se mostra cada vez mais disparatada, tingida de ficção, onde todos os dias nos sentamos e comemos sopa ao lado de alguns monstros. O que você tem a dizer aos leitores(as) e escritores(as) brasileiros(as) que se afogam de insônia?

Imagino que estejam sentindo asfixia. E nada pode suavizar esse gosto amargo. O fato é que, se o monstro foi eleito democraticamente, só resta rezar para que não altere a constituição para se perpetuar no poder. Enquanto isso, é preciso manter um esforço político. Mas também cabe a autocrítica, porque se o pêndulo foi ao outro extremo, algo incomodou o eleitorado.

Já ouvi teorias da conspiração e não me impressionam. Mas entendo… vocês devem estar se perguntando mil vezes: como isso aconteceu?

JULIA: Quais os riscos e benefícios de uma literatura calcada na realidade? Você teme que a sua ficção seja inundada de política? Há como/ deve-se mudar de assunto?

Minha literatura sai de mim exatamente como a sinto. Toda tentativa de maquiá-la com outras perspectivas ou correntes resulta em textos ruins. A maioria dos meus textos se relaciona com nossos conflitos internos e o amor.

JULIA: Em momentos como este, ainda é possível refugiar-se, autoexilar-se na literatura e escapar da realidade?

Todos construímos bolhas para sobreviver à realidade. Mas a realidade pode explodir qualquer bolha no momento menos esperado. Por que García Lorca foi assassinado? Ele e tantos escritores e jornalistas? Escrever é uma das maiores liberdades humanas. Um escrito pode acender chamas centenas de anos depois de sua concepção.


JULIA CODO é formada em Letras pela USP, editora, escritora e tradutora do espanhol e do italiano. // As biografias de Melanie Taylor e das demais autoras da Puñado podem ser lidas aqui. // Tradução da entrevista e do conto “A falta de ficção” por Laura Del Rey.


__postagens recomendadas
0