Luminol Carla Piazzi Editora Incompleta
Luminol Carla Piazzi Editora Incompleta
Luminol Carla Piazzi Editora Incompleta

Posfácio do romance
“Luminol”, de Carla Piazzi

Leia abaixo, na íntegra, o texto escrito por Lucas Verzola para a primeira edição de “Luminol”, publicada em dezembro de 2022 pela Incompleta.

>> Se preferir, leia diretamente neste PDF, com a diagramação original do livro.


LUCAS VERZOLA é fundador e editor da revista Lavoura e autor de três livros – o mais recente, A última cabra (Reformatório, 2019).

Logo no início de “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, conto que abre Ficções, há uma citação que certo personagem de nome Bioy Casares atribui a uma entrada enciclopédica perdida: “Os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número de homens”. O que não é expressamente dito, mas se revela como um oráculo durante a narrativa e perpassa toda a obra de Borges é que os livros – e as bibliotecas – elevam a aludida multiplicação à infinitésima potência. Luminol, portanto, seria também um bestiário, um romance que tenta lidar com abominações de todas as espécies. Não é de estranhar que o que acompanha a primeira grande narrativa do livro – o causo de Dona Gertrudes e Seu José da Carne-Seca – é o encontro da pequena Maya com o espelho velho de sua bisavó, tão pesado como se “tivesse roubado um pedaço de cada um que já havia se olhado ali”. E o espelho é um dos grandes motifs do romance, resgatado múltiplas vezes, emprestando sentido literal e alegórico à narrativa. Ele está lá no primeiro encontro cúmplice com Quindim, é uma sugestão de título para um dos capítulos do diário de Clara, é núcleo de uma citação de Alain de Lille conjurada três vezes, se reinventa reduzido a um caco na fazenda do exílio, surge em delírios e devaneios e reaparece no finzinho da última parte em mais uma das manipulações de Maya.

Como elemento simbólico, o espelhamento é ponto crucial para entender o jogo manipulativo da autora e das personagens, cristalizado na presença de inúmeros duplos e das relações entre cada elemento emparelhado. O principal duo é formado por Maya e Clara, não só quando pensamos na primeira enquanto reflexo natural e hereditário da última, mas também quando cogitamos interpretar a mãe enquanto reflexo artificial da filha, num exercício que não só remonta, mas recria e edita memórias. Deste prisma, há uma inversão na ordem natural da linhagem, com filha dando luz à mãe justamente quando a estirpe parecia ter fim – uma estirpe composta apenas por Marias, o nome da principal mãe da cultura ocidental, até que chega Maya, cuja etimologia pode remontar a “mãe”, em tupi –, forjando um uróboro. Contudo, como essa última mãe também atua no campo do delírio, do quimérico, nos recordemos do sonho da mãe do Buda e de outra possível origem do nome Maya: “ilusão”, em sânscrito. Aqui, como em Borges, cópula, em uma acepção estendida, está pareada com espelho, em sentido poético. Desse modo, as crias Ernesto e Maya também são chaves de leitura para a compreensão de quem os origina e do meio em que estão inseridos, são atravessados pelo signo da violência, direta e literal no caso do garoto, estrutural no caso da pequena Maya. Em paralelo, a ditadura e o autoritarismo estão sempre presentes, ainda que quando numa vigília que antecede os sonos profundos. Um tá-tá-tá-tá nunca será um bater em um tambor sem evocar o som de uma metralhadora. Pensemos agora nos livros, esses multiplicadores de abominações.

Desde a primeira parte, “Moscas volantes”, nos deparamos com histórias dentro de histórias, com uma sequência de narradores ao modo d’As mil e uma noites, em que o destino da primeira contadora é por ela própria adiado na expectativa de alterá-lo – Maya admitirá mais tarde que deve ser o tipo de autora que segue escrevendo versões de um único livro, e temos elementos para deduzir que isso reflete sua dificuldade em elaborar o passado. Já na parte central do diário, há o grande restauro da biblioteca, o que faz com que Clara tenha acesso a autores que mediam suas relações com os outros personagens e consigo mesma. Tal comportamento está igualmente presente em Maya, seja no ofício de interpretação, organização e quiçá reescrita dos relatos de sua mãe, seja na forma como opera o seu agir-artístico de escritora. Assim, o Decameron, O tambor de Günter Grass, bestiários medievais, hagiografias e a descoberta de Saint-Denys se cruzam não só como objetos de leitura e estudo, mas também como elementos estruturantes da obra em progresso e da subjetividade das autoras. É à conclusão semelhante que Quindim chega quando reflete sobre sua própria relação – e por que não dizer, sobre a das outras personagens – com a leitura e a escrita, já na terceira parte do romance:

À medida que lia e circulava pelo seu mundo, buscando me apropriar daqueles textos pra decifrar algo de sua vida, sentia que sua escrita fazia o mesmo movimento: se apropriava de mim e me ditava suas próprias regras de tempo, espaço e verdade.

Por ocupar as páginas centrais do volume, o diário acaba sendo a principal ponte para acessar o percurso de Clara pela estrada do exílio: o reconhecimento da área externa da fazenda, o mergulho no interior da casa/biblioteca e o enclausuramento no próprio inconsciente em busca do mundo onírico. Mas se é de Clara a intimidade que mais acompanhamos, devemos sempre nos questionar: “Que Clara é essa?”. A mãe que sofre um acidente de carro quando regressava para reencontrar a filha, a militante que “eles mataram”, a mulher obcecada pelo fundo do rio, talvez a ponto de se jogar? Tudo isso se relaciona com a principal pergunta do livro: é possível confiar em Maya? A mesma Maya que, não por acaso, referencia Humbert Humbert, um dos mais clássicos narradores não-confiáveis da literatura. O livro acerta em não trazer respostas, contudo entregar pistas para que o leitor seja uma espécie de Teseu seguindo o fio de Ariadne pelo romance-labirinto. Talvez seja necessário, todavia, borrifar um pouco de luminol pela casa de Astérion e acender a luz negra para acessar tudo o que as divertidas personagens pretenderam ocultar com uma faxina nem sempre bem-resolvida. Sorte a nossa. Em meio a tantas referências literárias, históricas e filosóficas, é bom lembrar que ganhamos todos quando a autora é também boa leitora – de livros e pessoas –, caso de Carla Piazzi, nesta ótima estreia como romancista.

__sobre a obra

Um romance de Carla Piazzi
Posfácio por Lucas Verzola

528 páginas ~ ISBN: 978-65-88104-19-4


Luminol poderia ser pensado como um luto labiríntico, uma perspectiva inusitada do século 20 em diário, um romance detetivesco e polifônico cujas substâncias são o amor e a morte. Ou como aponta Lucas Verzola no posfácio, uma obra “que tenta lidar com abominações de todas as espécies”. Poderíamos conceber as três narradoras das três partes do livro como uma criatura tricéfala saída de um bestiário, que busca lidar – numa mistura volátil de sedução e repulsa, mas nunca indiferença – com retratos íntimos, ancestralidades e paisagens sociais do Brasil. Embora expressivo, nada disso encerraria a trama ou desvendaria sua arquitetura profunda, uma estrutura constituída por heranças, duplicações e espelhamentos, onde números e datas se organizam sob uma lógica própria.

Maya, Clara e Quindim nos guiam por casas, ruínas, matas e rios. Com elas, acompanhamos os malabarismos de uma autora tentando reconquistar a confiança de sua editora; um personagem literário e uma figura histórica invadindo o cotidiano; promessas difíceis de sustentar; um elogio às cartas e à lentidão das conversas; os lugares de mãe, filha e amiga se fundirem, cada uma dando cria às outras. Atormentadas por vozes, traumas políticos, culpas e imagens inscritas na memória, as personagens narram por meio da colagem de cartas, sonhos e diários para investigar o “desaparecido” de suas vidas e manipular o destino de suas perdas. No que é possível confiar?

O caráter enciclopédico e dilatado da prosa de Carla Piazzi é tramado sob os signos da penumbra, do hibridismo e da fragmentação. Nesse percurso circular aparecem lendas, história e filosofia. Somos leitores-intrusos numa intimidade ora dolorida, ora bem-humorada, onde convivem vigília e fantasmagoria, violência e ternura, exílio e pertencimento, apego e abandono, o luto e a criação.

0