– Venho tentando juntar umas verdades. Trabalho de arqueologia mesmo, pra alguém cuja memória dança em falso como eu. Verdades das maiores, que se queira escrever pra serem ditas em homenagens, e também aquelas pequenas que se quer mostrar, numa noite necessariamente fria, a um filho.

Era nisso que Isabela pensava ultimamente e, antes de passar a vez, completou:

– Não sei se acontece com vocês, mas o calor me espanta as ideias. Já tenho organizadas sete provas irrefutáveis de como a natureza é cruel, e quase o mesmo volume de momentos que tornam impossível a negação de alguma, pequenina que seja, possibilidade de alegria na Terra. Tudo anotado em noites gélidas como essa aqui.

– Vocês já veem, pela descrição dela, como a alegria é coisa de momento e a natureza é coisa de provas.

Otávio evitava a sua própria resposta. A esposa sabia que estava nervoso, porque se antecipava. Não penso muito no que penso, ponderou, sou um sujeito desses funcionais. Talita acompanhava esse semblante como se fosse um comentário feito em voz alta, e se irritava. Sequer existia uma ordem na conversa, e Otávio impunha sua passagem para em seguida gritar sussurrando:

eu

não

sou.

Não fossem aqueles seus melhores amigos; não fosse aquele um encontro para receber de volta a Sílvia, que desde o nascimento do bebê não tinha mais aparecido nos jantares, teria ficado em casa hoje, quilos de cobertores, vendo de longe Otávio bufar e ajeitar os óculos entre a leitura de um e outro e-mail. Porque eram seus melhores amigos talvez devesse responder com sinceridade. Que no que mais pensava, especialmente ao lavar os cabelos, era em sair daquela casa e do espaço cada vez mais apertado quando acontecia de ela e o marido atravessarem ao mesmo tempo uma porta, e o café quente do esbarrão ou quase esbarrão sempre cair na roupa dela, nunca no pijama dele. Vinha tendo uma necessidade maior de sentir-se limpa.

– Venho sentindo uma vontade maior de me sentir limpa, não sei.

E tinha a nuca dele. Um garoto de não mais que vinte e oito anos, tênis azuis de camurça, nenhum outro padrão comportamental: não chegava sempre atrasado, nem sempre na hora; não era sempre quieto nem sempre ria com os outros colegas da classe de inglês. Mas a nuca.

– Eu parei de usar perfumes quando tinha uns… treze, catorze anos. Não sei se por conta disso, mas só consigo sentir fortes os cheiros que conhecia até então. Venho pensando nisso.

– E na limpeza – Otávio riu.

Isabela ofereceu ajuda a Júlio, que chegava da copa com duas pizzas. Os moços estão quietos hoje, não? Mas não vou reclamar, porque você lembrou de deixar uma parte sem azeitonas, obrigada, não ri desse jeito pra mim senão vou ter que falar no que estou pensando e o pessoal vai se envergonhar, vocês não mudam nada, me passa um pouco do vinho, Chico, que delícia a de abobrinha com queijo de cabra, como está o bebê, afinal?

– Gente, o bebê é muito estranho.

Júlio deixou a espátula cair, indo enxugar na pia. Até esses pavores descabidos, Sílvia, eu poderia ter vivido com você e achado graça, se você conseguisse ter medo de tudo mas acreditado na gente. Mas você é uma idiota, e agora é uma mãe idiota, e continua tão charmosa, Sílvia, e tão engraçada.

– Não chega a ser desagradável, mas tenho medo que ele seja mau.

– Que bobagem! Mas vocês bem que mereciam um filho mau.

– E você, criatura, pensa no quê?

– Em lembrar de tirar as azeitonas, é evidente.

Eu – interrompeu Clara – ando meio esquisita desde que vi um amigo na tv. Acontece, eu sei: às vezes um amigo vai pra tv e fala umas coisas, mas quando um grande amigo vai pra tv e está ali, pra quem quiser ver, o jeitinho dele de falar e as risadas baixas amplificadas por um microfone… não sei, isso mexe com a gente.

Clara pôs-se a elaborar temas de aflição e desejo do anonimato, do eterno sonho da casa distante, do silêncio das manhãs e do amor pela privacidade. Depois contou como o amigo tinha interrompido sem querer o apresentador, que, muito incomodado, passou a fazer apenas perguntas hostis e agora Jorge tinha medo de sair de casa.

Começava a chover lá fora, começavam a quinta garrafa de vinho e João, que ainda não tinha dito nada, começava a desaparecer. João, que já tinha chegado à casa sem uma das mãos, mas que isso talvez ninguém houvesse notado pelo frio, perdeu um a um os dedos dos pés, e agora já não sentia mais receio quando encolhiam seus fios de cabelo, de uma cabeça que não pensava em nada de alguma importância ou se alguém notava o que estava se passando com ele, porque não notariam e se mantivesse alguma concentração talvez até pudesse fazê-lo de maneira mais rápida ao invés da maneira involuntária com que aquilo tinha começado.

Pensou na barriga, que imaginou ser a parte mais difícil e por isso exigir algum empenho extra; cuidou para não fazer barulho, mas não teve efeito: começaram a sumir-lhe os ombros, o blazer pesado cedendo, e nisso não sabia dizer quanto tempo estava passando, mas já não era Clara quem falava e já não havia mais vestígio da terceira pizza. Lembrou do fotógrafo Robert Capa, descrevendo seus instantes antes de saltar do avião de guerra: “Eu me levantei, certifiquei-me de que as câmeras estavam bem presas em minhas pernas e que meu frasco de scotch estava no bolso do peito, em cima do coração. Tínhamos ainda 15 minutos antes do salto. Comecei a repensar toda a minha vida. Foi como um filme em que o projetor enlouqueceu e vi e senti tudo o que comi, o que fiz, e cheguei ao final em 12 minutos exatos. Estava me sentindo muito vazio, e ainda faltavam três minutos”. João estava vazio fazia um ano e sete meses e aquela pergunta trivial de Francisco, um joguete entre amigos, transformava o seu não pensamento em gesto de desaparecer – parecia justo, bonito, queria contar para os amigos como se sentia, mas o formigamento o entretinha numa alegria há tanto tempo não sentida que se deixou levar, já não sabendo bem se teria volta, mas não importava.

– Eu joguei essa pergunta pra vocês, na verdade, porque venho pensando sobre como moro, essencialmente, em 2008. Na luz de 2008, nos filmes que passaram em 2008, nas conversas e viagens que vivi naquele ano… e depois disso só um grande zumzum, boleto vencido, aula pra dar.

O blazer e a calça pesada de João caíram de uma vez. Não vieram ventos fortes para bater as portas ou um grito de Isabela, que tomaria as roupas no braço para niná-las como a um bebê. Não houve mais um brinde, levantado por Júlio, que nesse instante já encostava a perna na de Sílvia porque sentia tanta saudade que não podia deixar de fazê-lo, imaginando que sua vontade atravessaria os tecidos grossos de inverno e encontraria calma na sua coxa quente de dez anos atrás. O amigo desaparecido era olhado por Clara, Sílvia, Otávio e Francisco.

Quando uma pessoa vai embora, vão também as maneiras como só ela pode relacionar-se com uma outra, e portanto parte desta outra também. Aquele sorriso que só João poderia dar para uma piada de mau gosto de Sílvia; a alegria que ele dava aos amigos sendo o gandula tresloucado do frescobol na praia ou brigando pelo último pedaço de shimeji – que hoje não havia tocado. Era nisso que pensava Clara, tentando lembrar do trecho que havia lido, talvez Karl Ove, e chorava miúdo ao emocionar-se com o desaparecimento de tantas coisas.

 

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